top of page
Buscar

Sebastião

  • Foto do escritor: M.S. Bueno
    M.S. Bueno
  • 22 de mar.
  • 4 min de leitura


Sempre quis um filho com nome Sebastião. Não tem nada no nome que me atraia em significado. Minha escolha está no apelido que gera: Tião! Tião denota fortaleza, impõe respeito. Que profissão você espera que o detentor de tal alcunha tenha? Mestre de obras, prefeito, fotografo. Coisa importante, sempre!

Não havia revelado esse desejo nos nossos primeiros encontros porque achei que minha namorada ia odiar. Quando virou esposa, pensei que teria uma chance de sucesso no convencimento. O máximo que consegui foi que poderia ser sua variação em espanhol, Sebastian. Pensei, pensei e pensei. Preferi desistir da ideia. Acho com esse nome, se for menino, não vai se chamar Tião.

Quando mudamos para a Tailândia, morávamos em um apartamentinho com sacada de esquina. O bairro em Chiang Mai era bem silencioso, familiar. Os tailandeses amam galos. Nosso quarteirão tinha um. Passava todas as manhãs pontualmente às dez para ciscar no gramado da vizinha maluca viciada em compras. Era de praxe em nossa rotina vê-los. Eu despertava pelas oito. Enquanto saia para buscar pão, minha esposa punha o chá para curar e preparava a mesa na sacada. Quando chegava, nos ajeitávamos nas cadeiras e comíamos nosso desjejum em total silêncio. Só então balbuciávamos algumas palavras, mas nada muito profundo. Temos dificuldade em acordar. Enquanto tomávamos nossa segunda xícara de chá, acendíamos o fininho da manhã e ouvíamos ao longe um cacarejar e sabíamos que ele vinha em nossa rua já já.

Um dia, de maneira espontânea, virei para minha esposa enquanto passava o beque e disse:

‘Deve ser dez horas já. Sebastião vem vindo aí!’

Enquanto Tião cacarejava, minha esposa gargalhava alto.

‘Hahahaha! Não acredito que você deu o nome para o galo de Sebastião!’

‘Você não quis no menino, dei no galo!’, e me pus a rir junto.

Enquanto nos recuperávamos do riso, Sebastião apontou na esquina.

‘Você reparou que ele anda acompanhado?’

‘Você tá falando da pretinha e da carijó que cisca com ele?’, perguntei.

‘Essas tem nome também?’

Fechei o ceno e pensei com dificuldade. Como não vinha nada, pensei que o sito atrapalhou e por isso respondi:

‘Maria e Joana’, e nos pusemos outra vez às gargalhadas.


Passei então a observá-las.

A pretinha, Maria, era enjoada, mas valente. Tinha um porte de galo garnisé, um andar altivo e confiante, nunca se intimidando com as motos a passar. Cagava e andava para os cachorros que latiam nos portões, louco para abocanhar seu sobrecu. Não se amedrontava nem um pouco e ciscava perante as grades sem qualquer amor à vida. Era mesmo “vida loka”. A gris, Joana, era assustada, provavelmente deve ter nascido em meados de setembro. Seu cagaço era digno de uma virginiana mal trabalhada: medrosa e paranoica. Andava raspando nas muretas das casas fugindo das motos, sempre perto de Tião, como se ele pudesse lhe proteger muito, e não podia ouvir o latido dos cães, que tremulava as penugens do rabo bandeira de medo.

Tião ficava dividido. Joana lhe fazia se sentir galo com g maiúsculo, Maria lhe esnobava. Isso ficava claro na esquina de casa, de onde surgiam. Esse o cruzamento limite onde Maria e Joana se separavam. Enquanto a cagona se travava pelo medo dos cães à frente, terminando seu passeio ali, a intrépida seguia adiante, andando em gramados nunca dante ciscados. Nosso herói ficava em um impasse: seguir adiante com Maria provando que é mais macho que muito galo, ciscando no focinho da vizinhança canina ou permanecer e proteger Joana, mostrando seu valor de galo cavalheiro. Era nesse momento que ele provava para mim ser um galo da alcunha que tinha adquirido. Ia no meio da rua, bem na bifurcação, travando o vai e vem do trânsito, dava duas pedaladas para trás com suas patas, como que patina no mesmo lugar, baixava a cabeça dando uma boa golfada de ar e cacarejava a todos pulmões podendo ser ouvido por toda Chiang Mai. isso sim é um Tião de verdade!


Um dia, não direi que belo porque estava um tanto poluído, constatei que Tião andava amuado. Não era um fato pontual. Havia dias que via que não cacarejava mais na esquina. Observei que tinha ao seu lado novas parceiras: uma canela-preta bem feinha coitada, daquelas usadas em macumba, e uma do pescoço largo, parecia galinha gringa, bem estranha. Maria e Joana tinham sumido.

Na mesma noite, Cachaça, dono da lanchonete da esquina, estava a bebericar uns gorós. Até aí, nada demais. Só mais uma noite de uísque e água com gás ouvindo Amado Batista tailandês no volume baixo com seus amigos. Ele fazia isso de domingo a domingo. Não respeitava nem os dias santos, não era um homem temente a Buda. Entretanto, como bom monarquista, todo feriado ligado ao reino, ele assava uma carninha na noite que antecedia junto com Pança, o perueiro, que por sinal era dono do Tião. E aquela era uma noite escaldante de agosto que antecedia o aniversário do Rei. Era uma data mais especial, portanto. Eles não assavam carne como normalmente faziam. Era uma data festiva especial, merecendo uma comida especial. Churrasco eles comem sempre e em qualquer horário. Na Tailândia se come churrasquinho de rua do café da manhã até a madrugada, de pé de frango a intestino de porco besuntado na pimenta. Estava a comer uma galinhada bem apimentada que os siameses adoram: kaeng khiao wan (curry verde tailandês).

No instante que vi Cachaça salivar perante o caldeirão que preparava na rua, na mesma mureta em que Joana se cagava de medo, me toquei que elas estavam na panela. Comentei com minha esposa que me confessou ter ouvido um cacarejar de desespero dias atrás no meio da tarde. Depois da constatação, ficamos em silêncio. Vendo minha tristeza, buscando simpatizar com o luto, minha esposa disse:

‘Tião nunca mais será o mesmo’.

Ela me fez sorrir. Tinha aceitado a alcunha, pelo menos para o galo.

 
 
 

Comments


Contato

©  2025 by M.S.Bueno

Todos os direitos reservados

bottom of page