A escada e o luto
- M.B.Bueno
- há 13 horas
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Tinha eu completado um ano desde a morte de meu pai. Um evento traumático por si só na jornada de um ser humano, intensamente agravado pela minha consequente morte no clã de origem. Os palhaços só servem para gracejar, quando eles ousam fazer a plebe pensar, ela o forçosamente o exila. Era ou o exílio ou o linchamento. Por mais admirador que seja do Cristo, não quisera eu ter o mesmo destino. Ser crucificado pelo povo enfurecido pela própria miséria que vê no calvário de outrem uma chance de aliviar o desprezo que sentem pela vida não estava em meus objetivos. Parti sem rumo, em direção a leste, onde mendigos e santos não são confundidos, em exílio completo, em busca de mim mesmo. Vivia em meio aos monges tibetanos nos himalaias, hospedado em um pequeno hotel nas cercanias do monastério de Dharamshala, onde o Dalai Lama vivia. A escolha do lugar para morar não fora aleatório, algo me conduziu até lá.
O quarto tinha uma vista privilegiada, era uma das poucas áreas descampadas nas montanhas de McLeod Ganj, onde o pasto e o forrageiro dos iaques, cabras e gados, era cuidadosamente cultivado. Uma visão nostálgica e viva de um passado ainda praticado entre os himachalis. Tive a oportunidade de inúmeras vezes bebericar um chá-preto, imerso no frio do fim de outono, e testemunhar o nobre agricultor das montanhas a plainar o solo recém-arado, a tocar o touro e a bisbilhotar o telefone enquanto mantinha o plainar em contato com o solo. Era o antigo e o moderno em confraria. Era a Índia, para mim, em sua essência. Horas passava eu entre observância e devaneios, entre vacas a saltitar de alegria a celebrar a liberdade, ainda que momentânea, e pensamentos penosos e sofridos de um passado que ainda me atormentava, naquela sacada de frente para os picos dos himalaias, alvos e gélidos.
A hospedagem tinha uma desvantagem, pois nada é perfeito. Tudo no universo está em equilíbrio pois dentro do certo há um ponto errado, assim como dentro do errado há uma parte certa. Ela ficava na encosta, bem abaixo do plato onde foi construído o monastério e todas as edificações que alimentam e se alimentam do templo. Tinha eu que galgar longos degraus que ligavam à cota mais alta e a estrada que leva ao centro da vila. Eram quase quatrocentos degraus, pelo que me recordo, o que, em si só, já é um esforço, mas a mais de dois mil metros de altitude, a contenda torna-se um calvário. Assim eu o encarava, como um calvário.
Cada vez que subia até a vila eu respirava fundo antes de dar o primeiro passo, mas quando assim decidia, saia em disparada em direção ao topo, não como um louco, mas como um sábio, controlando minhas emoções e ímpetos, dores e saudades, despedindo-me do que não queria mais ser. Focava na respiração e nos passos leves, compassados e certeiros. Usava meus batimentos, pois aquela altura meu grande coração palpitava na goela, como medidor do meu ritmo. Sentia as bochechas enrubescerem, as pontas dos dedos se aquecerem e incharem, sentia o vapor d’água sair da boca e encontrar o meu nariz como uma locomotiva a vapor. Não me importava o desconforto, eu só subia. Com raras exceções, subia até o topo. Quando parava era na saída da escola primária, pois gostava de observar a interação entre os tibetanos na sua essência, entre pais e filhos.
No topo, na pequena calçada que se formou no acostamento da rua que sobe até a vila, tomava meu folego. Meu coração era domado novamente ao seu batimento convencional conforme eu expirava pelo boca e ali mesmo condensava minhas angustias em meio às buzinas e a imensidão dos himalaias. Ali ficava Nabil, meu pai kashmiri.
Era impressionante a semelhança não só física mas também comportamental e emocional. Estava eu presenciando uma versão do meu pai falecido se tivesse nascido em meio ao altiplano. Fisionomia, jeito de falar, o tipo de assunto que gostava de conversar, era como se tivesse ali meu pai, recém-falecido, encarnado. Ficamos amigos, obvio, e passávamos horas juntos a conversar sobre os mais diversos assuntos, assim como fazia com meu pai, nada sério, mas muito sobre o mundo. Ele me convidava para um chai, eu trazia um doce, gulab jamun, meu favorito. Ele ria, dizia que era sempre meu aniversário. Em nossas conversas, descobri que ele era geminiano, do mesmo ano que meu pai, o que explicava muita coisa, meu pai também era de ar.
A ideia de ter aquele homem no topo, naquela circunstância em que vivia, parecia o combustível perfeito para meu coração palpitar com afinco e fazer minhas pernas moverem-se com decisão e disciplina. Já nem parava mais na escola, mesmo que fosse horário de saída ou entrada das crianças. Nessa altura, eu olhava para o topo e o via me esperando, uma mão no bolso a enganar o frio, outra com dedos em v a tragar seu cigarro. Parecia que sentia que eu estava subindo. Vê-lo me dava força. Eu ofegava, quando lhe dava mão, ele sorria. As vezes, nem conversávamos, ficávamos lá, eu a respirar fundo buscando o ar que me faltava nos pulmões, e ele a tragar seu cigarro que seus pulmões tanto pediam, ambos em silêncio torpe a admirar os himalaias. Eu ali tinha a oportunidade de dizer adeus ao meu pai, ele ali tinha algo que eu não sabia. Quem me dizia era seu olhar, de pai, o mesmo olhar de pai que meu pai tinha.
Antes de eu partir, ele partiu primeiro. A princípio, dizia que esperaria a neve chegar antes de realmente voltar a Caxemira. Mas ele acabou indo antes, um pouco antes da minha partida. Disse que precisava ver os filhos que não via desde o último inverno. Ele me presenteou no final. Despediu-se de mim, como meu pai me faria se eu pudesse ter a oportunidade de lhe dizer adeus.

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