Noite escura da alma
- M.S. Bueno
- 2 de mai.
- 2 min de leitura

Enfim, o suserano do subterrâneo transpassou a superfície que lhe separa do contagiante raiar do sol para enegrecer-me o dia, parar-me o tempo e trazer-me a escuridão. Enquanto o sol, sempre a radiar, imperiosamente na galáxia, estiver a se mostrar, ofuscados ficam os demais seres que por sua soberana luz se submetem à sua vontade. Somente quando a escuridão de Ades se opõe ao seu reinado é que uma parte de seu zodíaco perde-se na luz e vê-se imerso nas trevas.
É a noite escura da alma, o ocaso a anunciar a ausência do eu, daquele que brilha e se mostra, que ofusca e esconde aquilo que não se vê ou que não se quer ver, mas que lá está, presente, na escuridão da alma. É como a pupila, a se dilatar ao entardecer, no lusco fusco, ainda incapaz de enxergar no breu, pois o lilas do sol poente deixa para trás o rastro do regente. Assim que o agora enegrece, assim que o dia se torna noite, o astuto gato ajeita suas pupilas e se adapta a penumbra que se postula.
Ela é longa e sombria. Não há penitência nem austeridade que prepare o homem para o empalidecimento de sua existência. O único esforço requerido e ofertado é o de aceitar, sem relutar, perante o despertar das sombras. Assustar-se e sucumbir ou se entregar e enfrentar são as únicas escolhas possíveis para o herói que encara em seu ser a presença do breu. Não há outra opção. Aí está o único livre-arbítrio presente na vida do sofredor eu.
A luva a ele concedida lhe acomoda aos dedos com a precisão do costume feito sob medida pelo alfaiate. Nem justo nem largo, na medida, precisa e firme, confortável e inquietante. Aos olhos do temeroso, assustador lhe parece o açougueiro que com a faca e a limalha afiam o fio que afastará a carne podre que ainda se dependura da pelanca saliente, uma sobra desnecessária mas que ainda presente pesa sob o corpo que já não admite excessos.
Ao homem, não há escolha se não sucumbir e se deixar passar pela lâmina que corta e extirpa aquilo que já não mais serve. A dor é desconsertante, anuvia a vista, embriaga a alma, exorta o homem de seu próprio ser. Ele não mais será ele, se vivo passar pela noite escura da alma. Nada nem ninguém retorna vivo do mundo dos mortos. Renascido, será um novo eu, se houver um amanhecer.
A morte chega súbita e repentina, surpreendente, sem qualquer aviso prévio ou vestígio que lhe possa anunciar o entardecer. Não há lamparina prendida a amenizar a morte que se perpetua. Um acontecimento brusco a deixar o mais preparado dos homens atônito. Perplexo, cabe ao observador apenas o testemunho e nada mais. Não há força que lhe fará sobrepujar tal acontecimento. A despedida é inadiável, um fato que se não for acolhido estará perdido para sempre, na noite escura da alma.
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