Bogatell
- M.S. Bueno
- 17 de mar.
- 6 min de leitura

Era verão. Meu primeiro em Europa. Fora visitar um grande amigo de faculdade, um francês, morando em Espanha, Barcelona, para ser mais exato. Ele trabalhava durante o dia, logo, só nos víamos no período da noite, que era dia, porque o Sol só pousaria no horizonte mediterrâneo lá pelas nove e meia. Podíamos então aproveitar o período juntos.
Nesse dia, fui lhe esperar na praia. Pelas duas e meia, tomei o ônibus na Avinguna Diagonal em direção à praia de Bogatell. Dissera-me para ficar perto da entrada da praça, onde tivesse campos de futebol. Respondi-lhe que estaria por ali sob a sombra de uma das torres de holofotes, comuns em praias de cidade grande. Deitei-me onde havia sombra e era vazio, sem muita gente no em torno. Logo adormeci, deitei de bruços na esteira de palha, relaxei a bochecha no antebraço direito e entreguei-me ao sono. Ainda não estava totalmente adaptado ao fuso. Quando despertei, com uma cutucada na costela direita, olhei para meu amigo sorrindo.
“Você é malandro!”, disse com um grande sotaque francês, enquanto apontava com o queixo para as italianas deitadas próximas de mim a buscar um pouco de sombra.
“Cara, nem sabia que estavam aqui. Se soubesse, não teria ficado sonhando, babando na areia.”, respondi-lhe e nos pusemos no riso.
Ali ficamos por algumas horas. A desfrutar do Sol, já não tão escaldante, e do frescor do mar mediterrâneo. Me contava sobre suas aventuras amorosas, seu amor platônico pela mulher basca do amigo catalão, suas feridas de Helene e seu novo posto. Ouvi-lhe resmungar sobre as mazelas do mundo e reclamar do seu gerente que era, de fato, um escroto. Me ative a simplesmente concordar com a cabeça e dizer “aham” em concordância, algumas vezes.
Cansados, os dois, decidimos voltar para casa. A caminhar pelo jardim da orla de Bogatell, mon frerè disse que seu ídolo, Manu Chao, costuma aparecer e jogar bola com a turma quando ele está em Barcelona. Disse também que ele conhecia um dos músicos, um português, que jogava com a galera do Mano e que por coincidência, hoje, era um dia deles jogarem. Ele titubeou algumas vezes, fez um leve cu doce, mas aceitou minha ousada, segundo ele, proposta de colarmos na turma do Manu Chao. Vai que ele estivesse lá.
Um adendo aqui. Esse meu amigo era daqueles fãs de fã clube, mas sem um, era aquariano demais para poder aceitar fazer parte de maltas. Isso fazia com que o nível de adoração tornava a experiência ainda mais emocionante para ele. Ainda que ele negue com veemência, até hoje, passados quase dez anos do acontecido, foi uma das maiores, se não a maior, experiência de sua vida. Daquelas que Deus guarda para ser relembrada nos últimos instantes de vida, antes de lhe mostrar a luz.
Sentamos cerca do grupo, numa espécie de palco, uma grande bancada de concreto, onde podíamos ficar perto suficiente para ver o grupo e longe o suficiente para ficarmos próximos do Manu Chao, caso ele aparecesse. Mon frerè tinha uma fé, superstição de fã eu chamaria, de que o Manu, como ele se referia à ele: “O Manu não gosta que as pessoas o idolatrem”. Eu caguei para sua teoria e só fiquei assistindo ao jogo. Era uma daquelas peladas bem ruins, onde a canela é mais cobiçada que a bola, mas boa o suficiente para fazer a galera se juntar, suada, fumar um e tocar um som na praça. Essa foi minha impressão.
Em determinado momento, um cara meio velho chega numa bicicleta meio fodida, bem colorida, e se senta com dois músicos que estavam a tocar, bem ao nosso lado, em um banco. Vi que meu amigo mudou de cor. Nunca tinha visto Morgan corar por nada e eramos amigos de longa data, dando me conhecimento de causa para achar aquilo estranho. Ele me sussurra “é o Manu”. Um misto de nervoso e emocionado. Se não fosse seu chapéu e estilão errado, não lembrava o Manu Chao das capas de CD e dos vídeos no YouTube.
“Age normalmente” me disse.
Dei uma risada de canto de boca e me ative ao silêncio, rindo-me internamente.
Permanecemos por ali algum tempo até que a pelada cessou e a galera começou a se aglomerar perto de nós, junto aos músicos. O tal português que conhecia meu amigo nos cumprimentou logo que nos viu. Começou a falar sem parar no português original, bem ao estilo lisboeta. Acho que tinha tempo que não falava a língua materna que quanto teve a oportunidade engatou a quinta e não parou. Fiquei com essa impressão enquanto lhe ouvia.
Nisso, chegou um rapaz, com seus vinte anos ou menos, atraído pelo vocábulo lusitano que ouvia destoar do castelhano, nada de Castela, que falavam os demais em meio ao falatório. Era filho do Manu Chao. Era cearense e estava a passar férias com o pai. Eu e ele começamos a trocar ideia e fluía bem. Senti-me a conversar com um de meus amigos de infância da quebrada. Fiquei com a impressão que apesar de pagar de doidão aos olhos da sociedade, que nos julga sempre, Manu Chao soube criar seu filho. Usava muita gíria no seu falar, cheio de palavrotas, mas estava a falar de Hegel, de Guevara, a declamar Facundo Cabral e conversar com muito mais propriedade de Jorge Amado que eu – que só lera “Mar Morto”.
Me envolvi no papo que quando me dei conta estava a falar com Manu Chao da diferença entre o Brasil de hoje e da década de noventa. Falou-me da praia de Iracema, de suas saudades do Ceará e da dor causada pela traição da morena. Aí, foi um dois. Quando vi estava a cantarolar Reginaldo Rossi, a acompanhar Manu Chao, à capela, em “Garçom”. Nessa hora, eu corei, internamente, mas corei. Não se ouvia castelhano, só meu brasileiro mal cantado. Caguei! Não é sempre que se pode cantar Reginaldo Rossi com Manu Chao na praia de Bogatell, em Barcelona. Então, soltei o gogó, sem dó! Ganhamos palmas, o Manu Chao me sorriu e passou o violão de volta ao dono.
Mon frère me chamou de canto, tinha um sorriso de orelha a orelha, nunca o tinha visto tão feliz. Sugeri que fossemos comprar umas cervejas para a galera. Estavam a assar uma carne em uma parrilha improvisada entre tijolos. Tomavam um destilado horroroso, que nem me atrevi a tomar. O filho do Manu me ofereceu sua bicicleta ao ouvir nossa ideia, concordar e contribuir com alguns euros. Disse então, que me dessem o dinheiro, quem fosse contribuir que eu traria as cervejas, já que só tínhamos uma bicicleta. Foi nesse instante que meu amigo Morgan teve seu momento de princesa.
Manu Chao lhe assoviou, lhe fez um aceno, disse algo em francês – sim, ele é francês, só descobri isso naquela hora – e apontou para sua bicicleta. Pedalamos juntos em silêncio absoluto por uma boa distância. Morgan tremia de felicidade.
“Cara! Tu tem noção!? Tô pedalando na bicicleta do Manu Chao, cara!”
Me pus a gargalhar, quebrando o silêncio que imperava à meia-noite, e ele ria de felicidade. Nunca vi ninguém tão feliz em pedalar numa bicicleta tão fuleira.
Ao chegar nas Ramblas, não me deixou sair de perto das bicicletas, como se alguém quisesse roubar uma bike tão deplorável. Comprou várias cervejas, dividiu em algumas sacolas, distribuímos entre nós e voltamos. Ele pedalava em silêncio e calma, apreciando cada instante, querendo eternizar o segundo. Fiquei feliz por ele e respeitei o momento. Pedalamos a volta bem devagar, a sentir a brisa, a ouvir o silêncio tendo o ranger da engrenagem da bicicleta do Manu como trilha sonora. Foi, sem dúvida, o nheque nheque mais sonoro da minha vida.
A madrugada já avançava, a bebida tinha terminado, meia dúzia ainda estavam a mordiscar os últimos nacos de carne. Eu estava sentado com meu amigo no mesmo banco de concreto que nos sentamos antes de toda essa experiência acontecer, quando o Manu Chao pediu um espaço e sentou-se entre nós. Não falou nada. Viera atraído pelo silêncio que fazíamos - pois, somente quando a amizade é real que se pode permanecer junto em silêncio sem que haja qualquer desconforto – deu um pega no baseado, me cutucou com o cotovelo e me ofereceu a ponta. Não pude não negar. Fumei meu primeiro baseado com o Manu Chao.
Morgan não esboçou nenhuma frase, nem mesmo em francês. Estava em êxtase. Eu fiquei muito chapado, não tinha como esboçar qualquer reação. O Manu…foi o Manu. Ficou em silêncio, porque até mesmo um ídolo precisa se sentir humano.
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