Dakshinamurti
- M.S. Bueno
- 19 de mar.
- 6 min de leitura

Era período de seca no sul da Índia quando o vi pela primeira vez. Não vi seu olhar que muito me impressionaria conforme construía uma relação com ele. Em primeiro lugar, senti sua presença. Intrigou-me, fez-me questionar. Ali, sabia que estava diante de um mestre, um mahatma, mesmo que aos olhos dos outros ele pareça um louco. Em kali yuga, os loucos serão chamados de santos e os santos serão conhecidos como loucos.
Estive em Varkala, seis meses antes. Viera despretensiosamente para relaxar, antes de iniciar o trabalho nas Ilhas Canárias, e terminei ensinando ioga em um pequeno estúdio que montamos dentro de um hostel. O dono gostou de mim, de minhas aulas e decidiu me contatar por mais seis meses durante a temporada em Kerala.
Lá estava, desolado e cansado, sentado à varanda junto de meu amigo Ramesh, com quem trabalhava, a fumar tabaco e observar os hóspedes, quando o vi pela primeira vez. Tinham cerca de vinte pessoas incessantemente falando, umas sobre as outras, perdidas em uma alegria narcísica, buscando aprovação de si mesmas através da escravização da atenção alheia, em uma grande egofonia. Enquanto isso, um homem destoava dos demais em sua altivez, presentemente alheio à miséria humana daqueles jovens, em sua maioria, em busca de si mesmos. Ele olhava para os céus. Tinha entrega em seu olhar. Flutuava sentado em uma cadeira acapulco faltando algumas cordas que parecia desconfortável – depois tive a oportunidade de me sentar nela e era bem ruim – ainda que ele estivesse confortavelmente presente.
Um dia, um grande amigo, que também convivera com ele, me disse que perguntado o que tanto fazia ali parado, Sachinji lhe respondera que movia as estrelas, que sustentava os céus e que esse era seu trabalho. Terminava suas afirmações, raras e cirúrgicas, sempre com uma gargalhada pois, por mais absurdas que fossem, eram verdadeiramente absurdas.
Gostava de ficar em sua presença e geralmente ficávamos sozinhos, no máximo com mais uma ou duas pessoas próximas. Quando havia muita gente em seu entorno me evitava. De início, não entendia muito o por quê, mas, com o tempo, com a construção de nossa amizade, sentia que havia uma conexão especial, como se eu também fizesse parte de sua prática, assim como ele, meu guru, fazia da minha. Quando estávamos juntos, só nos dois, permanecíamos em silêncio, não havia a necessidade de palavras entre nós. Falávamos mais na presença de Ravindra que, por ser um jñani, precisava entender tudo, intelectualmente, enchia o mestre de perguntas. Ele respondia, todas, mesmo as não perguntadas, porque para aquele que vive na verdade não existem meias respostas.
Aqui fica uma dica. Caso encontre um verdadeiro mestre, pergunte-lhe o que quiser e terás sua resposta. Entretanto, saiba que talvez você não gostará tanto da resposta. Aceite as consequências pois, como instrumento da verdade, o mestre é apenas um agente do carma. A verdade é soberana.
Vivia um grande momento em minha vida. Finalmente, encontrara e convivia com meu mestre, que me ensinava muito em sua mera presença, que me compartilhava tanto sobre o sadhana e a vida, trouxe-me o caos e me entorpeceu de verdade. Descia as escadas assobiando de felicidade, tinha dado uma grande aula, sentia-me pleno. Passei por Sachinji que estava absorto nos céus, deitado em sua rede. Quando assim estava, não trocávamos olhar ou qualquer comunicação, respeitava seu nobre silêncio, mouna, e deixava o muni permanecer em sua paz, na presença divina, sem qualquer intromissão. Entretanto, ele me olhou e me paralisou com sua mirada. Não me disse nada, por minutos, só me eternizou em seu olhar e ali fiquei, parado a olhar. Com um abrir de lábios entre a barba espessa, num tom grave e seco, disse “isso que você faz é inútil”, levantou-se e saiu em direção ao mar onde se banhava todo fim de tarde, em shivamuhurta, a hora de Shiva.
Tempos depois, visitava um amigo em Jaipur – Ravindra, o jñani – que me sugeriu seguir rumo à Goa. Senti as palavras do Sábio Senhor em seus lábios e segui rumo ao sul. Senti também que reencontraria Mestre Sachinji.
Meia década se passou desde o episódio que mudou minha vida. Depois de muitos anos a compreender, a entender, a refletir e a meditar sobre o ensinamento, aceitei o caos e mergulhei em meu sofrimento, em busca da verdade. Entendera que só poderia trabalhar em mim e que esse era meu carma. Servira demais aos outros. Dedicara tempo de mais de vida desse corpo em prol de uma realidade cega. Aceitei o ioga por completo e deixei Shiva tomar conta de mim.
Saímos da praia a confabular sobre a alma de minha companheira. Seria ela uma criança ou uma sexagenária, indagou-me. Displicentemente caminhava em silêncio a refletir sobre a pergunta para lhe dar uma resposta acurada. Passávamos por uma passagem estreita, aberta na restinga, usada por muitos para chegar a praia. Um amigo francês me parou com entusiasmo a me cumprimentar. Respondi-lhe com menos fervor e mantive minha marcha. Olhei para trás, para ver se minha esposa continuava próxima para começar a explanar uma resposta. Enquanto falava, mal introduzindo o vocábulo, voltei-me para frente e avistei uma figura alta, esguia e resplandecente. Estupefato, larguei os calçados que segura em minhas mãos, juntei as palmas em saudações e incrédulo bradei “Sachinji, I can’t believe!”.
Era Ele. Não o via a cinco anos. Reconheci-lhe porque a Ele estou ligado pelo laço do gurukulam. Se não fosse a tradição, mestre e discípulo, não o reconheceria, com toda certeza. Sua aparência não me remetia ao homem de outrora. As vestes pretas eram as mesmas, pois para um muni, a morte é a libertação. Contudo, o corpo era mais fino e longo, especialmente os membros, e trazia a barba e os cabelos compridos, trançados por jaataas, os dreadlocks naturais dos shaivas.
Ele continuou caminhando em minha direção sem esboçar qualquer reação. Eu fiquei paralisado e assim que ele passava por mim, toquei-lhe o ombro em sinal de amizade. Ele apenas passou por mim, sem esboçar nenhuma reação. Permaneci atônito de felicidade, passava por um momento difícil de finalização e tocá-lo me encheu de paz como se tivesse me levado ao vazio que ele vivia. Minha esposa, não entendeu nada e eu não tinha palavras para explicar no momento, assim como continuou sem ter já que uma experiência como essa transcende o intelecto e o único capaz de compreender são aqueles que a experienciaram. Simples palavras são incapazes de interpretar com acurácia algo que vai além do verbo.
Caminhamos até nossa casa em silêncio e assim permaneci em minha varanda a mirar os transeuntes, em companhia dos macacos que na árvore ao lado desfrutavam do fim de tarde e a experienciar a felicidade que a visão do guruji impregnou em minha alma. Quando voltei a mim, minha esposa me olhou com seus grandes olhos portugueses e curiosidade virginiana, em busca de uma resposta tangível para algo intangível, e me questionou sobre o que aconteceu. Tentei lhe explicar o inexplicável.
A cada resposta implausível, gerava-se mais questionamentos. Ainda assim, sua curiosidade e sagacidade para interpretar algo não-interpretável me ajudou a perceber que o que vivi naquele momento foi um encontro com o Mestre. Era Rudra, Mahadeva, o Grande Mestre. Depois de muito perguntar, vendo seu desespero em tentar compreender o que sentira – sim, ela também sentiu a presença do mestre, como ela mesma admitiu depois, ainda que questionasse fortemente a sensação – disse, ou melhor, meus lábios disseram “Ele não me respondeu porque não há mais ele. Não há mais Sachinji ali. Ele está em Deus e Deus finalmente está nele” e simplesmente a deixei atônita enquanto sorria de felicidade verdadeira.
Somos bombardeados de verdades construídas e transmitidas que ficamos cegos perante a realidade, não a vista, mas a sentida. Ele não se parecia com um mestre, não se vestia como um sannyasin, não falava e nem reagia como um mestre de ioga que nos é vendido. Ainda assim, ele era o verdadeiro mestre.
Dias depois, acordamos mais cedo do que o habitual, caminhávamos pelas ruas de Arambol com o silêncio e a bruma típicas das manhãs de inverno indianas. Excluindo os habituais “bom dia” e “vamos comer?” não havíamos trocado palavras. Apenas andávamos, quando vi uma figura alta e longa a apontar na curva à diante, era Sachinji. Dessa vez, não disse nada, nem minha esposa, que também o viu, tampouco ele, fiquei apenas a mirá-lo enquanto passava aproveitando o presente momento em sua presença. Quando estávamos próximos suficientes, ele retribuiu o olhar e senti sua altivez e plenitude. Levei a mão ao coração, como costumava lhe cumprimentar e retribui o olhar com um acesso de cabeça. Ele nada fez e continuou andando, altivo e pleno. Nós, permanecemos em silêncio.
Desjejuava contente naquela manhã. Minha companheira, depois de terminar seu omelete, já devidamente regressa ao corpo, me disse, entre uma golada de café e outra, “Agora entendo o que diz o tantra quando afirma que, em kali yuga, os santos serão chamados de loucos e os loucos serão os ditos santos”. Apenas respondi com um sorriso porque finalmente ela compreendeu o incompreensível pelo intelecto. Afinal, ela também foi tocada pela presenta de Shri Dakshinamurti, o Benevolente, aquele que transmite o Ioga através do silêncio de sua presença.
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