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O tupi, a tamoio e o banto

  • Foto do escritor: M.S. Bueno
    M.S. Bueno
  • 24 de mar.
  • 10 min de leitura


A mata parecia mais densa e escura no lusco fusco da manhã que se anunciava. A claridade obscura era suficiente para os olhos de caçador de Agenor, acostumado a penumbra da floresta, guiava-se pelo cheiro de orvalho nas folhas e troncos e pelo toque da sola dos pés sobre a serra pilheira que se forma na floresta virginal do alto da serra do mar. O arcabuz estava preparado para o disparo, pronto para abater qualquer presa que fosse ciscar ou fuçar no solo fértil da mata atlântica atrás de frutos caídos, insetos ou tubérculos. Há dias que seus filhos não comiam nada além de farinha com peixe seco, sentia certa pressão causada pelo roncar das panças de seus barrigudinhos que já somavam quatro com idades variando entre um e nove anos. Nhá Eneide já lhe azucrinava por um pedaço de caça que reduzisse a barulheira nas miúdas barrigas.

Andava com cautela a tatear cada passada evitando qualquer som que pudesse espantar o silêncio da alvorada e denunciasse sua presença na mata. Mantinha seus ouvidos atentos pois não podia contar com a visão que não passava de vultos e silhuetas entre a prateada névoa que surgia entre as árvores. Ao primeiro craquear de folhas dirigia sua atenção ao som, cerrava bem os olhos de homem tupi, fungava o ar gelado e esparso a identificar a espécie da presa, antes de efetuar qualquer disparo. No espaço entre a noite e o dia, existe um portal em que os animais parecem se perder entre os mundos onde somente os homens e as onças parecem possuir a capacidade de estarem vivos e é nesse momento que eles caçam. Com certeza, Agenor não queria ver a onça nem tampouco a onça queria ver Agenor.

Eis que um estalar nos galhos do dossel, entre as copas das árvores próximas, ressoou. O pequenino homem se agachou reduzindo seu semblante, pois o som produzido pela madeira parecia de um animal de maior porte e, caso fosse uma onça ou suçuarana, colocar-se compacto faria com que aumentasse as chances de sua sobrevivência se o bicho lhe avançasse. Aguardou por instantes encoberto pela bruma que ficava mais espessa e pela ausência de som que lhe fazia escutar nada mais do que o later de seu próprio coração. Respirava profundamente o ar gélido, erguia os ouvidos e buscava identificar algum vulto sobre as copas entre as nuvens que lambiam a mata. Um curto e forte piado se propagou no dossel fazendo seus batimentos acelerarem e Agenor a respirar ainda mais fundo. Acalmado, prendeu a respiração ao soar do segundo canto. Cerrando ainda mais os olhos observou uma massa negra empoleirada sobre os galhos de uma grande árvore uns dez passos de sua posição. Apesar de o canto parecer de um macuco o semblante era grande demais para ser o pássaro. Ele respondeu cantando de volta, imitando o mesmo piado – os macucos se atraem pelo canto de um invasor ou de fêmea – e seguiu-se uma resposta no mesmo tom. A dúvida lhe seguia e cantou mais uma vez pois se fosse deveras um macuco seria um açu, um bitelo, como diziam os caiçaras, tendo sua resposta quase que imediata. Instintivamente, com a coronha apoiada no ombro e o coração na garganta, agora batendo em modo predador, apertou os olhos puxados na alça maça do velho arcabuz e esmagou o gatilho liberando o cão que ao martelar o aço produziu a faísca inicial seguido pelo cuspir de fogo do cano soltando chumbo em direção a copa e o som de trovão anunciando a manhã nas matas do sertão de Maresias. Um grande corpo despencou levando consigo alguns galhos caindo sobre o solo macio de folhas secas.

– Agenor, por quê me atiraste!? – disse o homem banto.

– Seu Cipriano!? – respondeu assustado – Minha Nossa Senhora, o que foi que eu fiz? – complementou em desespero levando as mãos à cabeça ao ver o velho caçador ferido.


Carlos cuidava das pequenas Isabel e Maria na entrada da casa enquanto o mais velho, Zico, alimentava o fogo que deveria ser braseiro quando o pai retornasse da mata com a caça. Nhá Eneide passava o café calmamente pelo coador de pano fazendo o aroma tomar conta da cozinha e se espalhar por toda casa enquanto observava seus filhos pela janela. Eis que ao longo, na picada que dava em sua casa, surge Agenor a carregar Seu Cipriano sobre os ombros, numa imagem que se assemelharia a uma formiga a carregar uma noz mais que o dobro do seu peso e tamanho. Apesar do grande esforço, visível em seu olhar, o homem tupi caminhava com velocidade com o homem banto em suas costas mostrando uma força descomunal alimentada por um desespero para salvar Cipriano, que apesar da dor e do sangue mantinha seu semblante calmo evitando denunciar a sensação que sentia na perna. Zico, concentrado no fogo, mal vê a aproximação do pai, mas Carlos sentiu a presença – herdara o faro caçador dos tupis – e fez a menção em avisar a mãe que já aparecia na entrada da casa com as mãos na cintura em sinal de preocupação e descontentamento.

Ao chegar à varanda, Agenor, com a ajuda dos dois filhos de nove e sete anos, tão pequenos quanto ele, descem o homem e o colocam sentado sobre o banco de madeira rústico, feito diretamente do tronco de jacarandá, com a perna ferida estirada na horizontal que ocupa praticamente todo o acento. Sua perna estava ensanguentada. A calça de algodão cru cor de terra estava empapada do rubro, quase negro, sangue.

Seu Cipriano era alto, cumprido e magro, muito diferente dos demais caiçaras. Vivia nas matas do sertão de Maresias. Ninguém ao certo sabia quando aparecera por lá, nem quantos anos tinha, nem de onde viera. Especulações eram feitas aos montes – aldeias adoram um mexerico – diziam que era fugido de alguma fazenda para os lados do alto da serra e se abrigara nas matas, porque era assim que vivia antes de ser trazido forçadamente de Angola, e mesmo depois da abolição, não quisera retornar a viver juntos aos brasileiros porque eram um povo violento. Falava um português arrastado cheio de termos banto que os locais tinham dificuldade de entender. Isso, quando falava, porque era um homem misterioso, gostava mesmo dos animais e seres da floresta onde vivia.

Todos se olhavam em espantoso silêncio, ouvia-se apenas o estalar da lenha, que naquele instante ardia sozinha, sem a supervisão de Ziquinho, e os contidos grunhidos de Seu Cipriano ao tentar conter as dores da ferida. Eneide olhava para o homem e para Agenor, buscando uma resposta para o que fazer nessa situação. Ambos não a correspondiam perdidos na dor e no cansaço, respectivamente. Levou as mãos a cintura e foi acessar seu pensamento, rezava em silêncio para seu amado São Benedito pedindo-lhe uma luz, quando ouviu o sussurro de sua avó Clara lhe dizendo o que fazer.

– Isidoro, pega a chaleira e esquenta a água no fogo – disse se dirigindo a Zico em imperiosa voz como se estivesse possuída – depois me sirva ela na bacia de escalda pés com um lençol limpo que está no armário do meu quarto.

– Carlos, vá por uma tesoura de costura e uma pinça.

– E Vosmicê – disse apontando para o marido – pega a cachaça.

– Que isso mulher, vais beber agora?

– Vá e não discuta comigo – respondeu-lhe com chamas no olhar.

Os três saíram a executar seus afazeres. Sabiam que não atendiam a mãe, nem a esposa, mas uma entidade que frequentemente viam pois, sempre que alguém no vilarejo ou em outras partes da costa precisavam de ajuda, para o corpo ou a alma, vinham recorrer a ela. Eneide aprendera com sua avó, que aprendera com sua avó, e assim sucessivamente, desde os tempos em que os caiçaras moravam em taperas e eram conhecidos por tamoios. Por isso lhe chamavam de Nhá, em sinal de respeito.

Ao retornarem com a tesoura, a pinça, e a cachaça, pai e filho sabiam que viriam mais ordens e apenas aguardaram. Assim que Ziquinho chegou com a chaleira de água quente, a Nhá fez sinal para que a água fosse despejada na bacia, rasgou o lençol em trapos e mergulhou alguns na água escaldante, e fez sinal para que o menino voltasse para o fogo com a chaleira pois precisaria de mais.

– Carlos, pegue folhas de pitanga e goiabeira. Quanto à vosmicê – apontando para Agenor – vá por umas babosas. Traga-me pedaços gordos.

Ambos saíram para cumprir suas tarefas. Carlos adorava a situação, para uma criança de sete anos tudo é uma grande brincadeira, enquanto Agenor se incomodava um pouco porque não gostava de ouvir ordens, especialmente de uma mulher, mas não estava em posição alguma de impor o seu descontentamento.

Os três retornaram para a varanda e encontraram a calça de Cipriano rasgada até próxima da virilha, com a perna nua cuidadosamente sendo lavada por Nhá Eneide com os panos quentes que estavam na bacia. Agenor sentiu mais alívio do que ciúmes, pois as feridas que se apresentavam não eram tão graves quanto pareciam perante a sanguera que produziram após o disparo. A chumbada se espalhara, tinha atingida a coxa, joelho e parte da canela superficialmente – a carne rija do homem banto segurou bem o tiro. Pediu para que Carlos colocasse as folhas em uma outra bacia com a nova água quente que Zico havia trazido e pediu a pinça que estava na bacia esterilizando junto com os panos. Catou a garrafa de cachaça, arrancou a rolha com a boca, despejou o líquido forte sobre a perna de Cipriano, que não emitiu nenhum som ainda que sua face expressasse dor, deu-lhe a garrafa para que bebesse um pouco, e começou a arrancar as chumbadas da carne com a pinça, lavando constantemente as feridas abertas com aguardente.

Limpas as feridas, começou a banhar a perna com a água das folhas de pitanga e goiabeira sem que ninguém emitisse nenhum som de dor ou espanto. As crianças estavam animadas e vidradas, Eneide concentrada e possuída, Agenor atônito e aliviado e Cipriano embriagado e agradecido. Esperavam calmamente a perna secar após o banho, averiguando se ainda havia sangue, que já não escorria. Cipriano, apesar da idade avançada, não sabia ao certo mas, com certeza, já passava dos oitenta anos, ainda que não aparentasse pela vida saudável de homem do mato, tinha excelente cicatrização, quase instantânea. Nhá Eneide passou a carne da babosa na perna antes de enfaixá-la com tiras do lençol de algodão limpo.


A lua já estava cheia quando finalmente Seu Cipriano seguiria de volta para sua choupana perto da pedra branca no alto da serra entre Maresias e Paúba. A rede fora sua cama, as crianças suas companheiras e os cuidados de Nhá Eneide lhe deram uma sensação de família, algo que não experienciava desde de que tivera a sua surrupiada junto com sua liberdade em Angola. A perna estava devidamente sarada, graças aos cuidados de curandeira da mulher tamoio, a cachaça e as conversas com o homem tupi e principalmente a convivência com a canalha, com seus olhares curiosos, sem preconceito, que lhe faziam perguntas intermináveis e lhe pediam histórias da mata e de África.

– Seu Cipriano, cuide bem dessa ferida e não pie mais para Agenor – disse Dona Eneide às gargalhadas.

Podexa Nhá! – respondeu-lhe acanhado.

Antes que pudesse sair, as crianças, vendo sua partida, se juntaram na varanda e lhe pediram uma última história. Ele consentiu e tomou o acento no mesmo banco em que na lua nova teve a perna tratada. A canalha se ajeitou nas esteiras no chão batido da varanda e Dona Eneide acendeu seu cachimbo, fingindo fumar ao canto a contemplar a jurema mas tinha os ouvidos atentos a voz forte do homem banto.

– O dia tava bem carminho quando conheci o Chico – disse Cipriano, iniciando sua história.

– Quem é Chico, Seu Cipriano? – perguntou-lhe Carlinhos que era demasiado ansioso para ouvir a história com calma.

– Cala a boca, seu burro! – disse Zico depois de desferir um tapa na cabeça de Carlos – deixa ele contar a história.

Eneide apenas olhou de rabo de olho, pitou o cachimbo com fumo e riu de canto de boca.

– Bata no caçula não, moleque! – repreendeu-lhe carinhosamente o banto.

– O dia tava carminho no dia que conheci o Chico – disse Cipriano retornando à história – tava na capoeira cuidando da roça. Tinha nhame, mandioca, uns pé de banana. Daí, achei curioso que as foia do nhame tava meio comida, né.

– Daí, fiz fofoca com eu: – disse colocando a mão no queixo – isso é bagunça de bicho. Olhei também na bananeira e também tava carcomida. Fiquei muito lunga!

– O que é lunga, Seu Cipriano? – perguntou Carlinhos lhe interrompendo, mas desta vez sem a repressão de Zico que também não tinha entendido o termo.

Cipriano pensou, mas não lembrava nenhuma palavra em português que pudesse lhe ajudar a traduzir, então fez cara de bravo com um rosnado e todos começaram a rir, inclusive ele.

– Bravo! – disse Carlos. Cipriano assentiu com a cabeça.

– Sentei na árvore da capoeira e fiquei espiando a roça pa vê que bicho foi que fez bagunça – continuou com a história.

– Esperei e esperei… e nada do bicho. Quando tava desistindo de achar quem fez bagunça, vi um bugio desse tamanho – e fez um gesto com as mãos mostrando o tamanho do bicho.

– Tinha uma barba grande – disse fazendo um gesto com as mãos em volta do queixo indicando a barbicha ruiva que o macho dos bugios costumam apresentar – e quando viu eu, correu de vorta para a árvore e começou a gritar assim: huhuhuhuhu!

Enquanto gritava imitando o bugio, a canalha lhe acompanhou e todos se puseram a rir, às gargalhadas.

– Ele se carmô depois e foi-se embora. Eu colhi a banana, porque não sou bobo nem nada – disse puxando a pele do olho direito com o indicador e arregalando o olho – e deixei o cacho pendurado na varanda.

– No outro dia, de manhãzinha, o danado não me vorta! – disse se levando do banco e colocando as mãos na cintura, levando as crianças às gargalhadas mais uma vez.

– Que que o senhor fez, Seu Cipriano? – desta vez, quem lhe indagou foi Zico, mostrando sua curiosidade na história.

– Olhei ele no olho, assim – disse olhando fundo no olho do menino Zico – e disse: Vós quereis uma banana!?… Mas não te dou de perto! Hahahaha!

E, às gargalhadas, despediu-se de Nhá Eneide e das crianças que ficaram sem saber se o bugio tinha mesmo pegado a banana ou não.

Desde então, Seu Cipriano sempre recebia as crianças que se aventuravam mata a dentro para visitá-lo e ouvir suas histórias. Nunca pode apresentar-lhes Chico que não lhe visitava quando tinha a companhia da canalha. Entretanto, um dia, Carlos e Zico fizeram tocaia de manhãzinha perto da tapera e viram o bugio Chico comendo das bananas ao lado de Seu Cipriano que lhe falava num idioma que os meninos eram incapazes de compreender, mas sabiam que era mágico, pois o homem banto era amigo do bugio e só os magos falam com os animais.

 
 
 

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