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Bica do defunto

  • Foto do escritor: M.S. Bueno
    M.S. Bueno
  • 25 de mar.
  • 6 min de leitura

Dona Gertrudes e Seu Arlindo tinham o corpo repousado sobre o velho banco de jequitibá, herdado de seus pais, escorado por banquetas feitas de goiabeiras. Se não fosse a densidade das madeiras, o corpo de Nicanor estaria largado às traças sobre o chão batido cor escarlate.

O técnico do Maresias teve um ataque do coração, uma morte súbita, depois do golaço marcado pelo centroavante Cascatinha no dérbi contra o arquival Cachoeira de Boiçucanga. A emoção foi tamanha para o coração maduro de meio século que não aguentou bombear todo sangue necessário para os mais de cem quilos de corpo, já nos acréscimos da semifinal do sebastianense de sessenta e oito. A equipe de Dom Nicanor só se dera conta do acontecido quando deram por falta do xerife entre os muitos corpos a se abraçar no centro do campo que invadiram a lameada cancha ao apito final do juiz da partida. Encontraram-no sentado de forma jogada, endurecido com a mão no peito.

– Vede Tude! Morreu feliz o pobre. – disse Seu Arlindo ao observar que o rosto redondo e largo ainda mantinha o mesmo sorriso quando lhe encontraram na beira do campo.

– Pena que não vai ver o time perder do Guaecá na final.

– Que isso Seu Arlindo! – repreendeu Norberto, filho de Seu Nicanor, meio campo do Maresias – Vamo ganha o sebastianense! Agora é questão de honra depois da passagem de papai!

Norberto, Dadinho, Batistinha, Perneta, Bituca e o craque Cascatinha vieram de Maresias buscar o corpo para ser velado e enterrado. A turma era grande e tinha de ser porque o homem era pesado. Normalmente, levariam o corpo de canoa, como vieram, mas com a maré alta, o mar bravio e o presunto pesado essa era uma opção descartada. A opção era levá-lo pela serra, que seria difícil, mas necessário, já que uma noite tinha passado do falecimento e após esse tempo havia o receio de que os vermes já começassem a sair do corpo e a decomposição pudesse tornar o velório impossível. Decidiram carregá-lo de volta em uma liteira improvisada, assim os cem quilos distribuídos em seis carregadores se revesando faria da jornada menos árdua do que já seria pela trilha da serra que separa Maresias de Boiçucanga.

Construíram uma maca de madeira, mas na primeira tentativa, ao erguer o corpo, a madeira não aguentou o peso e começou a ranger e rachar, forçando-os a baixar o andador.

Ma’rapaz! O home pesa mais que uma anta! – disse Cascatinha espontaneamente ao aliviar do peso no chão.

Todos seguraram o riso, pois, apesar de verossímil e engraçado, o testemunho era fora de hora e desrespeitoso perante a dor da perda de Norberto, colocaram a mãos nos queixos e passaram a pensar em uma solução. Nenhuma palavra foi proferida nos cinco minutos que se seguiram, com Norberto agachado ao lado do corpo e os demais circulavam na área em volta.

Dona Gertrudes tomou a dianteira porque em situações mais complexas as mulheres tendem a ter mais força e tomar a frente. Esperava pelo ferver da água a olhá-los pensativos e desajeitados, encostada no batente da porta que separava a varanda da cozinha. Assim que o cheiro do café tomou conta do ar, os homens logo começaram a relaxar e se ajeitar na área.

Dadinho, Batista, Perneta e Bituca se sentaram na mureta, Seu Arlindo se manteve no banco onde estava a fumar cachimbo, assim como Norberto que o acompanhou seguindo seu chamado com duas palmadas no assento ao lado, só Cascatinha que demorou um pouco mais para se acomodar porque queria se ajeitar na rede, mas por alguns instantes titubeou prevenido por seu julgamento – pensou se estaria sendo folgado demais – mas Dona Gertrudes lhe assentiu com o olhar para que tomasse a posição, enquanto servia o cafezinho nas canequinhas de ágata para os demais.

Todos sorveram o café com o mesmo silêncio, ao som das maritacas que anunciavam a alvorada, sob a luz alaranjada do Sol da manhã que surgia por detrás da serra do mar.

– Por quê não fazem uma tipoia? – questionou Seu Arlindo em tom de afirmação, quebrando o silêncio e trazendo uma solução ao impasse.

– Tenho um bom toco de aroeira que me sobrou do cerco do bananal – complementou – é forte suficiente pa’guenta o home.

– O senhor empresta a ini para carregar ele? – perguntou Norberto apontando para a rede em que Cascatinha se balançava.

O ancião consentiu com a cabeça enquanto dava um gorpe em seu café, virou o olhar para a esposa e piscou. Ela retribuiu com um sorriso ao colocar as bananas-da-terra cozidas sobre uma banquetinha na varanda.


O Sol já brilhava alto quando chegaram no topo de serra. O calor era forte apesar do céu de maio com o outono avançado. A rede e a aroeira realmente suportaram bem o peso do defunto. Só os homens que sofriam. Apesar de revesarem no carregar do palanquim, sempre de dois em dois, o peso era grande, a trilha era difícil e o sol era forte.

– Tô guentando mai’não Beto. – disse Cascata, fatigado, com o poste apoiado no ombro esquerdo.

Vamo para ali no topo um pouco para descansar – sugeriu Bituca que carregava a outra ponta junto com o centroavante. Os demais consentiram, menos Norberto.

– Tem uma bica um pouco mais à frente, só descer um pouco depois do topo.

A opção de Norberto trouxe ânimo a todos que sofriam com o calor. Cascata e Bituca se animaram mais que os demais, atacaram o topo e começaram a descida na dianteira, estimulados pela esperança de um longo gole d’água fresca, direto da bica que corria entre as pedras. Prenderam a tipoia entre os galhos que pendiam baixo e correram para tomar água, seguidos pelos demais. Bebiam como fazem os monos, sem usar as mãos, evitando sujar a água com terra, as cobras e para sorver mais rápido. Os cinco bebiam com voracidade, enfileirados, um ao lado do outro, tamanha era a sede.

Devidamente refrescados, sentaram-se à sombra das árvores e ficaram em silêncio a admirar a vista. Podiam ver sua terra entre as copas, encantados pelo verde exuberante com esparsas casas entre a vegetação, a alvura da praia que se estendia retilínea entre a serra de Boiçucanga e o morro do Paúba e o mar revolto que dava à Maresias sua alcunha. O encanto da vista, o cansaço da trilha, o peso do corpo e o calor do sol apino sobre suas cabeças justificaram uma silenciosa e longa parada. Ninguém se movia, ninguém dava um pio. Pareciam não só a admirar, mas também a refletir sobre a vida, sua finitude e como ela poderia ser breve e interrompida subitamente por um infarto ou coisa parecida, fazendo com que o momento fosse ainda mais especial do que um simples descanso.

Foi quando um gemido interrompeu-lhes. Todos se entre olharam e se apontaram como quem questiona a autoria do grunhido, mas sem fazer nenhum som, atentos para que se o barulho pudesse se repetir, estariam prontos para identificar a procedência. Poderia ser algum bicho pois a mata é cheia de feras e todo caiçara sabe que a onça faz tocaia nos córregos onde antas, pacas e quatis vem beber água. O grunhido se repetiu e parecia humano. Todos se entreolharam e levantaram as orelhas. Cascata fez menção de dizer algo, mas se conteve respondendo ao dedo em riste na frente dos lábios de Norberto que pedia para que o silêncio fosse mantido. Alguns instantes seguiram onde só se ouviam a água da bica a correr, o chacoalhar das folhas das copas ao sabor do vento sul que soprava do mar e o quebrar das ondas na costeira, ao longe, quando ouviu-se um grunhido seguido de um sofrido sussurro de “sede” com os es alongados e aspirados.

As cabeças se viraram para a rede, entre eles e novamente para a rede que parecia se mover. Todos ficaram incrédulos e assustados, permaneceram estáticos. Só quando o grunhido e o sussurro de sede se repetiu e tiveram a certeza de que vinha da tipoia é que todos saíram correndo em disparada serra abaixo. Só pararam quando a trilha deu na praia e embaixo do cajueiro de Dom José Moreira, eles recuperaram o fôlego, acalmaram os ânimos e recuperaram o juízo. Depois do susto, voltaram à bica e deram um gole ao ressurrecto Seu Nicanor que por um milagre tinha voltado a vida.


Naquele ano, o Maresias foi campeão do sebastianense. Segundo Cascatinha, graças à água milagrosa da bica que ia visitar quase diariamente desde o acontecido. O Imprensa Livre noticiou o título citando o centroavante no artigo sobre o título dizendo “a água lhe deu mais ânimo para marcar todos os gols da goleada de cinco a zero sobre o Guaecá que apesar da bela campanha não foi páreo para a aguerrida equipe do Maresias”.

O local ficou famoso no vilarejo. Era visitada com frequência pelos caiçaras de toda costa norte. Dom Moreira tentou batizar a bica de “ressurreição” porque ela ficava em suas terras, mas ela ficou conhecida na boca do povo como “bica do defunto”.

Dom Nicanor nunca mais assistiu a um jogo do Maresias. Tinha sempre uma moringa com a água da bica que Norberto ia buscar com frequência para o pai que, apesar do medo da morte, viveu mais vinte anos, segundo ele, graças a bendita água. Em seu túmulo foi instalado um sino ligado ao caixão, solicitado pelo próprio ao filho como desejo póstumo, caso o velho ressuscitasse outra vez.

Quanto a bica, hoje ela se resume a um fio d’água que corre num cano de PVC à beira da Rodovia Rio-Santos, construída sobre a velha trilha caiçara. Turistas e moradores param, coletam e bebem de sua água, ignorantes de suas propriedades milagrosas, até os dias de hoje.

 
 
 

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