Marmara
- M.S. Bueno
- 20 de mar.
- 2 min de leitura

Era manhã de sexta-feira. O takbir já fora entoado por duas vezes nos minaretes de Sultan Ahmet. Nosso último dia na antiga Constantinopla. Vivemos ali por um longo junho de Sol. Conhecíamos cada esquina da velha capital otomana. Tínhamos explorado todos seus museus, tomado centenas de cafés, compartilhado vários chais com inúmeros lojistas na busca de uma echarpe para minha esposa. Já não havia muito o que explorar.
Com uma tigela de iogurte em minhas mãos, perguntei à minha esposa, que bebericava um café, o que faríamos em nosso último dia. Normalmente, ela me responderia com a mesma questão,
esquivando-se de tomar uma decisão. Mas não naquele dia.
‘Vamos a caminhar na orla’, respondeu com uma certeza inabalável. Um tanto incomum para seu temperamento canceriano. Não gostam muito de tomar a dianteira nas coisas. É o que afirmam os astrólogos.
‘Quero ver o turquesa do mar de Marmara uma última vez’, complementou, depois de um
longo suspiro, com a admiração de pintora no olhar.
Descemos a colina. Passamos pela suntuosa praça que separa as mesquitas Hagia Sofia e Sultan Ahmet. Pudemos testemunhar por uma derradeira vez o chamado para as preces do meio-dia.
Como o namaz (reza) mais importante do dia santo, não havia local suficiente dentro das mesquitas. Os fiéis estenderam seus tapetes ali mesmo, à porta do templo, de frente para a praça, em direção à Meca, e se puseram a orar. Em um movimento de prostração uniforme, entoavam em uníssono ‘Allah U Akbar!’.
A magia do acaso não nos presenteou apenas com a presença da oração naquele dia. Ao chegarmos a orla, com um dia aberto, céu limpo praticamente sem nuvens, o turquesa do mar de Marmara nos fez flutuar.
Sentamos num banco sombreado pela copa do pinheiro mediterrâneo e nos pusemos a observar os barcos a navegar no Estreito de Bósforo. Minha esposa calada, em transe, a olhar o mar. Eu a observar tudo com olhos de criança.
‘Se olhares bem no horizonte, quase não se pode vê-lo. O turquesa do mar se confunde com o céu azul bebe’, disse, quebrando o silêncio.
Com pragmatismo do ascendente em virgem e a dureza do elemento terra, me respondeu.
‘Não é azul bebe, querido. É azul-celeste essa cor.’
‘Faz sentido’, afirmei.
Saquei a câmera. Concentrei-me no horizonte para tentar capturar o momento numa fotografia.
Depois de dois cliques da lente, um vendedor de simit me aparece no enquadramento. Ainda que surpreso, me senti enobrecido pela possibilidade da foto, mas não me pus nervoso. Ajeitei o foco e a velocidade do obturador. Mirei a lente e capturei o instante o mais rápido que pude, antes que o homem se fosse distante. Baixei a câmera incrédulo com a beleza do momento capturado.
Sentindo-me abençoado e sem olhar para a foto tomada, desliguei a câmera, pendurei a bandoleira no pescoço e ofereci minha mão à minha esposa. Ela olhou minha mão e fitou meus olhos consentindo ao convite. Seus pés logo se puseram a postos e saímos a andar.
Não precisei olhar a foto. Sabia que Istambul havia me concedido testemunhar a honra daquele momento. Caminhar, em silêncio, de mãos dadas, sob o céu e ao lado do mar turquesa, sentindo a brisa, era minha forma de agradecer a cidade que me acolhera.
Allah U Akbar!
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