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Rasta Investidor

  • Foto do escritor: M.S. Bueno
    M.S. Bueno
  • 21 de mar.
  • 5 min de leitura


Todos nós, encarnados em corpos humanos, seres viventes nesse planeta de provações e expiações, em algum grau, somos contraditórios. Na maioria dos casos, nem se quer nos darmos conta. Brinco com minha esposa que o auge de tal contradição seria um rastafári investidor. Pois bem, meses depois da anedota, demos de cara com essa figura mítica, em carne e osso.

Falando inglês afrancesado, um homem de quase cinquenta anos, mas que aparentava ter por volta dos trinta e cinco, com longos dreadlocks, desgrenhadamente cultivados como preconiza a tradição de Selassie, nos cabelos e na barba, usando um óculos de grau ao estilo Harry Potter, faltando uma das hastes, senta-se conosco na padaria nepalesa e, como todo bom maluco que nos encontra, se põe a falar sem parar. Nunca tinha presenciado tamanha energia em um único ser. Era um gênio, como todo bom maluco. Podia discorrer sobre qualquer assunto, de macroeconomia à teoria dos vedas, de jogos online a artes marciais. Dizia ser um iluminado. Passara os últimos anos conversando com Deus, diretamente, indagando-o sobre a missão de Jesus e por que ele estivera quatro vezes na cadeia. Ele fora preso quatro vezes: duas vezes em França, uma na Inglaterra e outra na Índia. Segundo ele, essa última fora demasiado traumática e lhe levou ao dialogo direto com o Criador.

Dizia-se um defensor dos animais, motivo pelo qual fora encarcerado em Goa. Entrou em uma briga com locais porque estava alimentando os cães de rua. Não compreendi totalmente a história porque confesso ter tido dificuldade em acompanhar seu raciocínio. Até onde entendi, ele deu porrada em todo mundo. Era campeão francês de esgrima e mestre em artes marciais, mas quando a polícia chegou não pode brigar contra cassetetes e uma arma de fogo. Mostrou uma cicatriz na mão, entre os dedos médio e anelar, que teria sido do disparo da arma do policial quando tentou desarmá-lo. Entrou em tantas confusões em sua vida, já conhecera o sistema carcerário europeu, mas foi a gaiola na Índia que lhe transformou.

Era músico, investidor, mestre em artes marciais, profissional em algum jogo online de tiro que não sei bem o nome, iluminado, massoterapeuta, esgrimista e filantropo. Não lia livros impressos, pois era uma amante das árvores. Protegia os animais, mas brigava com todos os seres humanos que encontrava, inclusive nós.


Encontramo-nos por quatro vezes no café da manhã. Passamos horas conversando com ele. Ou melhor, ouvindo-o. No primeiro dia, fora até simpático e tivemos algum diálogo. No segundo dia, puxava mais assunto com minha esposa do que comigo e me deu sua primeira patada. No terceiro dia, chamou minha esposa para ser DJ com ele em uma das festas em que tocava aqui em Goa. Segurei a risada enquanto engolia um naco de pão, dei um gole no masala chai e olhei para minha companheira que estava azul de embaraço pela situação. A cada resposta dela, ele tinha uma contrarresposta. Deixou claro que não aceitaria um não ao convite.

Um adendo aqui, minha esposa se define como “uma senhorinha carola sexagenária que valoriza um chá com as amigas conversando sobre o último livro da Alice Hoffman”. Sendo assim, era óbvio que ela não gostaria de ser DJ de ninguém. Às oito da noite, já estamos de pijama na cama pensando no desjejum do dia seguinte.

Ela tentou algumas alternativas como desculpas, sempre rechaçadas pelo nosso amigo rasta. Finalmente, ele conseguiu que ela perdesse a paciência, o que é bem difícil. Ela aumentou o tom e disse, não sugeriu, como seria da sua estirpe, para que ele chamasse o amigo dele que estava ao seu lado, jogado, em Nárnia, após ter fumado haxixe. Aí ele desistiu. Ufa! Que alívio.

Daí em diante, passei a analisá-lo, usando os ensinamentos do Mestre Sócrates. Conduzi-o a uma entrevista, praticando a maiêutica. Indagando-o a cada afirmação, deixando-o no palco, que gostava tanto de estar em suas conversas. Dava lhe razão em tudo, porque não tinha alternativa. Ele sempre estava certo. Ele sempre era o melhor. Ele sempre tinha solução para tudo.

Observei, antes mesmo de começar a lhe dar corda, que ele precisa do conflito. Com um homem, ele sempre tem um empasse. Com uma mulher, ele sempre é o melhor. Quando eu afirmava algo, ele me contradizia, me diminuía ou dizia que fazia melhor ou que sabia mais. Quando minha esposa afirmava, ele concordava com ela e reiterava que isso que ela afirmava, ele sabia de cor e salteado ou que era um expert no assunto. Minha esposa saiu da padaria no terceiro dia, esgotada, me confessou.

No quarto dia, já com uma visão clara sobre as contradições do nosso amigo, fui ao desjejum decidido a compreender o porquê de tanta contradição. Porquê de tanta agressividade. Porquê a necessidade involuntária de estar a frente de todos, ser o melhor em tudo. Deixei-o falar. Não lhe dei corda, não precisei.

Ao se sentar em nossa frente, brinquei (provocando) com um bonjour. Ele se arfou e começou a descarregar toda a raiva que ele sentia pelos franceses em mim. Olhei-lhe nos olhos e elevei as orelhas, como fazem os cães, dando-lhe toda a atenção do mundo naquele instante. Então, entendi.

Ficamos lhe ouvindo por duas horas, ininterruptas. Ele saiu da padaria, leve e envergonhado. Minha esposa, estava acabada, coitada. Dormiu por duas horas ao voltarmos para casa, em um cochilo sem sonhos. Ao despertar, me questionou o que aconteceu. Respondi-lhe: “deixei sua criança ferida falar”.


Nosso amigo, rasta investidor, como muitos de nós, foi negligenciado pelos pais. No caso, pela mãe, a quem chamou de puta, algumas vezes. Sua mãe era hippie. Nos anos setenta, viera para Índia. Teve um affair com um local e assim veio ao mundo nosso amigo rasta. Fora criado pelo padrasto que se casou com sua mãe ainda grávida. Mimado pelos pais até os treze anos, quando seu irmão “branco e francês”, como ele mesmo descreveu, veio ao mundo, destrui o seu.

Por esse motivo, ele sempre brigava com todos. Por isso, ele sempre queria a atenção de todos. Como não vencera o menino de treze anos, negligenciado pelos pais, de uma hora para outra, brigava com o mundo por um pouco de atenção, ou melhor, por toda atenção do mundo.

O que ele se nega em aceitar é que o passado não pode ser mudado. Que os treze anos não se resgata e que a vida segue adiante. Quanto mais ele quer que o mundo o enxergue, mais o mundo lhe vira a face. Assim é o mundo dos humanos adultos.

É difícil deixar para trás a criança ferida. Mas quando não fazemos, o mundo faz por nós. Pois o mundo, não aceita contradições. Não existem rastafáris investidores. Para o mundo, ou se é um rastafári ou se é um investidor. Ou se é homem, ou se é criança. Não se pode ser os dois ao mesmo tempo. Mesmo que se queira.

 
 
 

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