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- Ioga
Não perca vida em posturas desnecessárias Esforço é limitado, energia contida Use-a com sabedoria, não com vaidade Gaste tempo, não vida. Sente-se consigo Não precisas do outro Não necessitas de nada Nem da mente, que teimará em lhe dizer o contrário. Aconchegue-se como lhe for confortável Acomode-se como lhe for conveniente Esforce-se como se fosse permanecer no eterno, É para onde se encaminhas. Pratique a presença do Eu em si Até que não haja mais si, apenas Eu, Com isso, o Liberto. Explorado, si desaparece Recolhido, Eu floresce Transformado, nasce um liberto.
- Bica do defunto
Dona Gertrudes e Seu Arlindo tinham o corpo repousado sobre o velho banco de jequitibá, herdado de seus pais, escorado por banquetas feitas de goiabeiras. Se não fosse a densidade das madeiras, o corpo de Nicanor estaria largado às traças sobre o chão batido cor escarlate. O técnico do Maresias teve um ataque do coração, uma morte súbita, depois do golaço marcado pelo centroavante Cascatinha no dérbi contra o arquival Cachoeira de Boiçucanga. A emoção foi tamanha para o coração maduro de meio século que não aguentou bombear todo sangue necessário para os mais de cem quilos de corpo, já nos acréscimos da semifinal do sebastianense de sessenta e oito. A equipe de Dom Nicanor só se dera conta do acontecido quando deram por falta do xerife entre os muitos corpos a se abraçar no centro do campo que invadiram a lameada cancha ao apito final do juiz da partida. Encontraram-no sentado de forma jogada, endurecido com a mão no peito. – Vede Tude! Morreu feliz o pobre. – disse Seu Arlindo ao observar que o rosto redondo e largo ainda mantinha o mesmo sorriso quando lhe encontraram na beira do campo. – Pena que não vai ver o time perder do Guaecá na final. – Que isso Seu Arlindo! – repreendeu Norberto, filho de Seu Nicanor, meio campo do Maresias – Vamo ganha o sebastianense! Agora é questão de honra depois da passagem de papai! Norberto, Dadinho, Batistinha, Perneta, Bituca e o craque Cascatinha vieram de Maresias buscar o corpo para ser velado e enterrado. A turma era grande e tinha de ser porque o homem era pesado. Normalmente, levariam o corpo de canoa, como vieram, mas com a maré alta, o mar bravio e o presunto pesado essa era uma opção descartada. A opção era levá-lo pela serra, que seria difícil, mas necessário, já que uma noite tinha passado do falecimento e após esse tempo havia o receio de que os vermes já começassem a sair do corpo e a decomposição pudesse tornar o velório impossível. Decidiram carregá-lo de volta em uma liteira improvisada, assim os cem quilos distribuídos em seis carregadores se revesando faria da jornada menos árdua do que já seria pela trilha da serra que separa Maresias de Boiçucanga. Construíram uma maca de madeira, mas na primeira tentativa, ao erguer o corpo, a madeira não aguentou o peso e começou a ranger e rachar, forçando-os a baixar o andador. – Ma’rapaz ! O home pesa mais que uma anta! – disse Cascatinha espontaneamente ao aliviar do peso no chão. Todos seguraram o riso, pois, apesar de verossímil e engraçado, o testemunho era fora de hora e desrespeitoso perante a dor da perda de Norberto, colocaram a mãos nos queixos e passaram a pensar em uma solução. Nenhuma palavra foi proferida nos cinco minutos que se seguiram, com Norberto agachado ao lado do corpo e os demais circulavam na área em volta. Dona Gertrudes tomou a dianteira porque em situações mais complexas as mulheres tendem a ter mais força e tomar a frente. Esperava pelo ferver da água a olhá-los pensativos e desajeitados, encostada no batente da porta que separava a varanda da cozinha. Assim que o cheiro do café tomou conta do ar, os homens logo começaram a relaxar e se ajeitar na área. Dadinho, Batista, Perneta e Bituca se sentaram na mureta, Seu Arlindo se manteve no banco onde estava a fumar cachimbo, assim como Norberto que o acompanhou seguindo seu chamado com duas palmadas no assento ao lado, só Cascatinha que demorou um pouco mais para se acomodar porque queria se ajeitar na rede, mas por alguns instantes titubeou prevenido por seu julgamento – pensou se estaria sendo folgado demais – mas Dona Gertrudes lhe assentiu com o olhar para que tomasse a posição, enquanto servia o cafezinho nas canequinhas de ágata para os demais. Todos sorveram o café com o mesmo silêncio, ao som das maritacas que anunciavam a alvorada, sob a luz alaranjada do Sol da manhã que surgia por detrás da serra do mar. – Por quê não fazem uma tipoia? – questionou Seu Arlindo em tom de afirmação, quebrando o silêncio e trazendo uma solução ao impasse. – Tenho um bom toco de aroeira que me sobrou do cerco do bananal – complementou – é forte suficiente pa’guenta o home . – O senhor empresta a ini para carregar ele? – perguntou Norberto apontando para a rede em que Cascatinha se balançava. O ancião consentiu com a cabeça enquanto dava um gorpe em seu café, virou o olhar para a esposa e piscou. Ela retribuiu com um sorriso ao colocar as bananas-da-terra cozidas sobre uma banquetinha na varanda. O Sol já brilhava alto quando chegaram no topo de serra. O calor era forte apesar do céu de maio com o outono avançado. A rede e a aroeira realmente suportaram bem o peso do defunto. Só os homens que sofriam. Apesar de revesarem no carregar do palanquim, sempre de dois em dois, o peso era grande, a trilha era difícil e o sol era forte. – Tô guentando mai’não Beto. – disse Cascata, fatigado, com o poste apoiado no ombro esquerdo. – Vamo para ali no topo um pouco para descansar – sugeriu Bituca que carregava a outra ponta junto com o centroavante. Os demais consentiram, menos Norberto. – Tem uma bica um pouco mais à frente, só descer um pouco depois do topo. A opção de Norberto trouxe ânimo a todos que sofriam com o calor. Cascata e Bituca se animaram mais que os demais, atacaram o topo e começaram a descida na dianteira, estimulados pela esperança de um longo gole d’água fresca, direto da bica que corria entre as pedras. Prenderam a tipoia entre os galhos que pendiam baixo e correram para tomar água, seguidos pelos demais. Bebiam como fazem os monos, sem usar as mãos, evitando sujar a água com terra, as cobras e para sorver mais rápido. Os cinco bebiam com voracidade, enfileirados, um ao lado do outro, tamanha era a sede. Devidamente refrescados, sentaram-se à sombra das árvores e ficaram em silêncio a admirar a vista. Podiam ver sua terra entre as copas, encantados pelo verde exuberante com esparsas casas entre a vegetação, a alvura da praia que se estendia retilínea entre a serra de Boiçucanga e o morro do Paúba e o mar revolto que dava à Maresias sua alcunha. O encanto da vista, o cansaço da trilha, o peso do corpo e o calor do sol apino sobre suas cabeças justificaram uma silenciosa e longa parada. Ninguém se movia, ninguém dava um pio. Pareciam não só a admirar, mas também a refletir sobre a vida, sua finitude e como ela poderia ser breve e interrompida subitamente por um infarto ou coisa parecida, fazendo com que o momento fosse ainda mais especial do que um simples descanso. Foi quando um gemido interrompeu-lhes. Todos se entre olharam e se apontaram como quem questiona a autoria do grunhido, mas sem fazer nenhum som, atentos para que se o barulho pudesse se repetir, estariam prontos para identificar a procedência. Poderia ser algum bicho pois a mata é cheia de feras e todo caiçara sabe que a onça faz tocaia nos córregos onde antas, pacas e quatis vem beber água. O grunhido se repetiu e parecia humano. Todos se entreolharam e levantaram as orelhas. Cascata fez menção de dizer algo, mas se conteve respondendo ao dedo em riste na frente dos lábios de Norberto que pedia para que o silêncio fosse mantido. Alguns instantes seguiram onde só se ouviam a água da bica a correr, o chacoalhar das folhas das copas ao sabor do vento sul que soprava do mar e o quebrar das ondas na costeira, ao longe, quando ouviu-se um grunhido seguido de um sofrido sussurro de “sede” com os es alongados e aspirados. As cabeças se viraram para a rede, entre eles e novamente para a rede que parecia se mover. Todos ficaram incrédulos e assustados, permaneceram estáticos. Só quando o grunhido e o sussurro de sede se repetiu e tiveram a certeza de que vinha da tipoia é que todos saíram correndo em disparada serra abaixo. Só pararam quando a trilha deu na praia e embaixo do cajueiro de Dom José Moreira, eles recuperaram o fôlego, acalmaram os ânimos e recuperaram o juízo. Depois do susto, voltaram à bica e deram um gole ao ressurrecto Seu Nicanor que por um milagre tinha voltado a vida. Naquele ano, o Maresias foi campeão do sebastianense. Segundo Cascatinha, graças à água milagrosa da bica que ia visitar quase diariamente desde o acontecido. O Imprensa Livre noticiou o título citando o centroavante no artigo sobre o título dizendo “a água lhe deu mais ânimo para marcar todos os gols da goleada de cinco a zero sobre o Guaecá que apesar da bela campanha não foi páreo para a aguerrida equipe do Maresias”. O local ficou famoso no vilarejo. Era visitada com frequência pelos caiçaras de toda costa norte. Dom Moreira tentou batizar a bica de “ressurreição” porque ela ficava em suas terras, mas ela ficou conhecida na boca do povo como “bica do defunto”. Dom Nicanor nunca mais assistiu a um jogo do Maresias. Tinha sempre uma moringa com a água da bica que Norberto ia buscar com frequência para o pai que, apesar do medo da morte, viveu mais vinte anos, segundo ele, graças a bendita água. Em seu túmulo foi instalado um sino ligado ao caixão, solicitado pelo próprio ao filho como desejo póstumo, caso o velho ressuscitasse outra vez. Quanto a bica, hoje ela se resume a um fio d’água que corre num cano de PVC à beira da Rodovia Rio-Santos, construída sobre a velha trilha caiçara. Turistas e moradores param, coletam e bebem de sua água, ignorantes de suas propriedades milagrosas, até os dias de hoje.
- O tupi, a tamoio e o banto
A mata parecia mais densa e escura no lusco fusco da manhã que se anunciava. A claridade obscura era suficiente para os olhos de caçador de Agenor, acostumado a penumbra da floresta, guiava-se pelo cheiro de orvalho nas folhas e troncos e pelo toque da sola dos pés sobre a serra pilheira que se forma na floresta virginal do alto da serra do mar. O arcabuz estava preparado para o disparo, pronto para abater qualquer presa que fosse ciscar ou fuçar no solo fértil da mata atlântica atrás de frutos caídos, insetos ou tubérculos. Há dias que seus filhos não comiam nada além de farinha com peixe seco, sentia certa pressão causada pelo roncar das panças de seus barrigudinhos que já somavam quatro com idades variando entre um e nove anos. Nhá Eneide já lhe azucrinava por um pedaço de caça que reduzisse a barulheira nas miúdas barrigas. Andava com cautela a tatear cada passada evitando qualquer som que pudesse espantar o silêncio da alvorada e denunciasse sua presença na mata. Mantinha seus ouvidos atentos pois não podia contar com a visão que não passava de vultos e silhuetas entre a prateada névoa que surgia entre as árvores. Ao primeiro craquear de folhas dirigia sua atenção ao som, cerrava bem os olhos de homem tupi, fungava o ar gelado e esparso a identificar a espécie da presa, antes de efetuar qualquer disparo. No espaço entre a noite e o dia, existe um portal em que os animais parecem se perder entre os mundos onde somente os homens e as onças parecem possuir a capacidade de estarem vivos e é nesse momento que eles caçam. Com certeza, Agenor não queria ver a onça nem tampouco a onça queria ver Agenor. Eis que um estalar nos galhos do dossel, entre as copas das árvores próximas, ressoou. O pequenino homem se agachou reduzindo seu semblante, pois o som produzido pela madeira parecia de um animal de maior porte e, caso fosse uma onça ou suçuarana, colocar-se compacto faria com que aumentasse as chances de sua sobrevivência se o bicho lhe avançasse. Aguardou por instantes encoberto pela bruma que ficava mais espessa e pela ausência de som que lhe fazia escutar nada mais do que o later de seu próprio coração. Respirava profundamente o ar gélido, erguia os ouvidos e buscava identificar algum vulto sobre as copas entre as nuvens que lambiam a mata. Um curto e forte piado se propagou no dossel fazendo seus batimentos acelerarem e Agenor a respirar ainda mais fundo. Acalmado, prendeu a respiração ao soar do segundo canto. Cerrando ainda mais os olhos observou uma massa negra empoleirada sobre os galhos de uma grande árvore uns dez passos de sua posição. Apesar de o canto parecer de um macuco o semblante era grande demais para ser o pássaro. Ele respondeu cantando de volta, imitando o mesmo piado – os macucos se atraem pelo canto de um invasor ou de fêmea – e seguiu-se uma resposta no mesmo tom. A dúvida lhe seguia e cantou mais uma vez pois se fosse deveras um macuco seria um açu, um bitelo, como diziam os caiçaras, tendo sua resposta quase que imediata. Instintivamente, com a coronha apoiada no ombro e o coração na garganta, agora batendo em modo predador, apertou os olhos puxados na alça maça do velho arcabuz e esmagou o gatilho liberando o cão que ao martelar o aço produziu a faísca inicial seguido pelo cuspir de fogo do cano soltando chumbo em direção a copa e o som de trovão anunciando a manhã nas matas do sertão de Maresias. Um grande corpo despencou levando consigo alguns galhos caindo sobre o solo macio de folhas secas. – Agenor, por quê me atiraste!? – disse o homem banto. – Seu Cipriano!? – respondeu assustado – Minha Nossa Senhora, o que foi que eu fiz? – complementou em desespero levando as mãos à cabeça ao ver o velho caçador ferido. Carlos cuidava das pequenas Isabel e Maria na entrada da casa enquanto o mais velho, Zico, alimentava o fogo que deveria ser braseiro quando o pai retornasse da mata com a caça. Nhá Eneide passava o café calmamente pelo coador de pano fazendo o aroma tomar conta da cozinha e se espalhar por toda casa enquanto observava seus filhos pela janela. Eis que ao longo, na picada que dava em sua casa, surge Agenor a carregar Seu Cipriano sobre os ombros, numa imagem que se assemelharia a uma formiga a carregar uma noz mais que o dobro do seu peso e tamanho. Apesar do grande esforço, visível em seu olhar, o homem tupi caminhava com velocidade com o homem banto em suas costas mostrando uma força descomunal alimentada por um desespero para salvar Cipriano, que apesar da dor e do sangue mantinha seu semblante calmo evitando denunciar a sensação que sentia na perna. Zico, concentrado no fogo, mal vê a aproximação do pai, mas Carlos sentiu a presença – herdara o faro caçador dos tupis – e fez a menção em avisar a mãe que já aparecia na entrada da casa com as mãos na cintura em sinal de preocupação e descontentamento. Ao chegar à varanda, Agenor, com a ajuda dos dois filhos de nove e sete anos, tão pequenos quanto ele, descem o homem e o colocam sentado sobre o banco de madeira rústico, feito diretamente do tronco de jacarandá, com a perna ferida estirada na horizontal que ocupa praticamente todo o acento. Sua perna estava ensanguentada. A calça de algodão cru cor de terra estava empapada do rubro, quase negro, sangue. Seu Cipriano era alto, cumprido e magro, muito diferente dos demais caiçaras. Vivia nas matas do sertão de Maresias. Ninguém ao certo sabia quando aparecera por lá, nem quantos anos tinha, nem de onde viera. Especulações eram feitas aos montes – aldeias adoram um mexerico – diziam que era fugido de alguma fazenda para os lados do alto da serra e se abrigara nas matas, porque era assim que vivia antes de ser trazido forçadamente de Angola, e mesmo depois da abolição, não quisera retornar a viver juntos aos brasileiros porque eram um povo violento. Falava um português arrastado cheio de termos banto que os locais tinham dificuldade de entender. Isso, quando falava, porque era um homem misterioso, gostava mesmo dos animais e seres da floresta onde vivia. Todos se olhavam em espantoso silêncio, ouvia-se apenas o estalar da lenha, que naquele instante ardia sozinha, sem a supervisão de Ziquinho, e os contidos grunhidos de Seu Cipriano ao tentar conter as dores da ferida. Eneide olhava para o homem e para Agenor, buscando uma resposta para o que fazer nessa situação. Ambos não a correspondiam perdidos na dor e no cansaço, respectivamente. Levou as mãos a cintura e foi acessar seu pensamento, rezava em silêncio para seu amado São Benedito pedindo-lhe uma luz, quando ouviu o sussurro de sua avó Clara lhe dizendo o que fazer. – Isidoro, pega a chaleira e esquenta a água no fogo – disse se dirigindo a Zico em imperiosa voz como se estivesse possuída – depois me sirva ela na bacia de escalda pés com um lençol limpo que está no armário do meu quarto. – Carlos, vá por uma tesoura de costura e uma pinça. – E Vosmicê – disse apontando para o marido – pega a cachaça. – Que isso mulher, vais beber agora? – Vá e não discuta comigo – respondeu-lhe com chamas no olhar. Os três saíram a executar seus afazeres. Sabiam que não atendiam a mãe, nem a esposa, mas uma entidade que frequentemente viam pois, sempre que alguém no vilarejo ou em outras partes da costa precisavam de ajuda, para o corpo ou a alma, vinham recorrer a ela. Eneide aprendera com sua avó, que aprendera com sua avó, e assim sucessivamente, desde os tempos em que os caiçaras moravam em taperas e eram conhecidos por tamoios. Por isso lhe chamavam de Nhá, em sinal de respeito. Ao retornarem com a tesoura, a pinça, e a cachaça, pai e filho sabiam que viriam mais ordens e apenas aguardaram. Assim que Ziquinho chegou com a chaleira de água quente, a Nhá fez sinal para que a água fosse despejada na bacia, rasgou o lençol em trapos e mergulhou alguns na água escaldante, e fez sinal para que o menino voltasse para o fogo com a chaleira pois precisaria de mais. – Carlos, pegue folhas de pitanga e goiabeira. Quanto à vosmicê – apontando para Agenor – vá por umas babosas. Traga-me pedaços gordos. Ambos saíram para cumprir suas tarefas. Carlos adorava a situação, para uma criança de sete anos tudo é uma grande brincadeira, enquanto Agenor se incomodava um pouco porque não gostava de ouvir ordens, especialmente de uma mulher, mas não estava em posição alguma de impor o seu descontentamento. Os três retornaram para a varanda e encontraram a calça de Cipriano rasgada até próxima da virilha, com a perna nua cuidadosamente sendo lavada por Nhá Eneide com os panos quentes que estavam na bacia. Agenor sentiu mais alívio do que ciúmes, pois as feridas que se apresentavam não eram tão graves quanto pareciam perante a sanguera que produziram após o disparo. A chumbada se espalhara, tinha atingida a coxa, joelho e parte da canela superficialmente – a carne rija do homem banto segurou bem o tiro. Pediu para que Carlos colocasse as folhas em uma outra bacia com a nova água quente que Zico havia trazido e pediu a pinça que estava na bacia esterilizando junto com os panos. Catou a garrafa de cachaça, arrancou a rolha com a boca, despejou o líquido forte sobre a perna de Cipriano, que não emitiu nenhum som ainda que sua face expressasse dor, deu-lhe a garrafa para que bebesse um pouco, e começou a arrancar as chumbadas da carne com a pinça, lavando constantemente as feridas abertas com aguardente. Limpas as feridas, começou a banhar a perna com a água das folhas de pitanga e goiabeira sem que ninguém emitisse nenhum som de dor ou espanto. As crianças estavam animadas e vidradas, Eneide concentrada e possuída, Agenor atônito e aliviado e Cipriano embriagado e agradecido. Esperavam calmamente a perna secar após o banho, averiguando se ainda havia sangue, que já não escorria. Cipriano, apesar da idade avançada, não sabia ao certo mas, com certeza, já passava dos oitenta anos, ainda que não aparentasse pela vida saudável de homem do mato, tinha excelente cicatrização, quase instantânea. Nhá Eneide passou a carne da babosa na perna antes de enfaixá-la com tiras do lençol de algodão limpo. A lua já estava cheia quando finalmente Seu Cipriano seguiria de volta para sua choupana perto da pedra branca no alto da serra entre Maresias e Paúba. A rede fora sua cama, as crianças suas companheiras e os cuidados de Nhá Eneide lhe deram uma sensação de família, algo que não experienciava desde de que tivera a sua surrupiada junto com sua liberdade em Angola. A perna estava devidamente sarada, graças aos cuidados de curandeira da mulher tamoio, a cachaça e as conversas com o homem tupi e principalmente a convivência com a canalha, com seus olhares curiosos, sem preconceito, que lhe faziam perguntas intermináveis e lhe pediam histórias da mata e de África. – Seu Cipriano, cuide bem dessa ferida e não pie mais para Agenor – disse Dona Eneide às gargalhadas. – Podexa Nhá! – respondeu-lhe acanhado. Antes que pudesse sair, as crianças, vendo sua partida, se juntaram na varanda e lhe pediram uma última história. Ele consentiu e tomou o acento no mesmo banco em que na lua nova teve a perna tratada. A canalha se ajeitou nas esteiras no chão batido da varanda e Dona Eneide acendeu seu cachimbo, fingindo fumar ao canto a contemplar a jurema mas tinha os ouvidos atentos a voz forte do homem banto. – O dia tava bem carminho quando conheci o Chico – disse Cipriano, iniciando sua história. – Quem é Chico, Seu Cipriano? – perguntou-lhe Carlinhos que era demasiado ansioso para ouvir a história com calma. – Cala a boca, seu burro! – disse Zico depois de desferir um tapa na cabeça de Carlos – deixa ele contar a história. Eneide apenas olhou de rabo de olho, pitou o cachimbo com fumo e riu de canto de boca. – Bata no caçula não, moleque! – repreendeu-lhe carinhosamente o banto. – O dia tava carminho no dia que conheci o Chico – disse Cipriano retornando à história – tava na capoeira cuidando da roça. Tinha nhame, mandioca, uns pé de banana. Daí, achei curioso que as foia do nhame tava meio comida, né. – Daí, fiz fofoca com eu: – disse colocando a mão no queixo – isso é bagunça de bicho. Olhei também na bananeira e também tava carcomida. Fiquei muito lunga! – O que é lunga, Seu Cipriano? – perguntou Carlinhos lhe interrompendo, mas desta vez sem a repressão de Zico que também não tinha entendido o termo. Cipriano pensou, mas não lembrava nenhuma palavra em português que pudesse lhe ajudar a traduzir, então fez cara de bravo com um rosnado e todos começaram a rir, inclusive ele. – Bravo! – disse Carlos. Cipriano assentiu com a cabeça. – Sentei na árvore da capoeira e fiquei espiando a roça pa vê que bicho foi que fez bagunça – continuou com a história. – Esperei e esperei… e nada do bicho. Quando tava desistindo de achar quem fez bagunça, vi um bugio desse tamanho – e fez um gesto com as mãos mostrando o tamanho do bicho. – Tinha uma barba grande – disse fazendo um gesto com as mãos em volta do queixo indicando a barbicha ruiva que o macho dos bugios costumam apresentar – e quando viu eu, correu de vorta para a árvore e começou a gritar assim: huhuhuhuhu! Enquanto gritava imitando o bugio, a canalha lhe acompanhou e todos se puseram a rir, às gargalhadas. – Ele se carmô depois e foi-se embora. Eu colhi a banana, porque não sou bobo nem nada – disse puxando a pele do olho direito com o indicador e arregalando o olho – e deixei o cacho pendurado na varanda. – No outro dia, de manhãzinha, o danado não me vorta! – disse se levando do banco e colocando as mãos na cintura, levando as crianças às gargalhadas mais uma vez. – Que que o senhor fez, Seu Cipriano? – desta vez, quem lhe indagou foi Zico, mostrando sua curiosidade na história. – Olhei ele no olho, assim – disse olhando fundo no olho do menino Zico – e disse: Vós quereis uma banana!?… Mas não te dou de perto! Hahahaha! E, às gargalhadas, despediu-se de Nhá Eneide e das crianças que ficaram sem saber se o bugio tinha mesmo pegado a banana ou não. Desde então, Seu Cipriano sempre recebia as crianças que se aventuravam mata a dentro para visitá-lo e ouvir suas histórias. Nunca pode apresentar-lhes Chico que não lhe visitava quando tinha a companhia da canalha. Entretanto, um dia, Carlos e Zico fizeram tocaia de manhãzinha perto da tapera e viram o bugio Chico comendo das bananas ao lado de Seu Cipriano que lhe falava num idioma que os meninos eram incapazes de compreender, mas sabiam que era mágico, pois o homem banto era amigo do bugio e só os magos falam com os animais.
- Sebastião
Sempre quis um filho com nome Sebastião. Não tem nada no nome que me atraia em significado. Minha escolha está no apelido que gera: Tião! Tião denota fortaleza, impõe respeito. Que profissão você espera que o detentor de tal alcunha tenha? Mestre de obras, prefeito, fotografo. Coisa importante, sempre! Não havia revelado esse desejo nos nossos primeiros encontros porque achei que minha namorada ia odiar. Quando virou esposa, pensei que teria uma chance de sucesso no convencimento. O máximo que consegui foi que poderia ser sua variação em espanhol, Sebastian. Pensei, pensei e pensei. Preferi desistir da ideia. Acho com esse nome, se for menino, não vai se chamar Tião. Quando mudamos para a Tailândia, morávamos em um apartamentinho com sacada de esquina. O bairro em Chiang Mai era bem silencioso, familiar. Os tailandeses amam galos. Nosso quarteirão tinha um. Passava todas as manhãs pontualmente às dez para ciscar no gramado da vizinha maluca viciada em compras. Era de praxe em nossa rotina vê-los. Eu despertava pelas oito. Enquanto saia para buscar pão, minha esposa punha o chá para curar e preparava a mesa na sacada. Quando chegava, nos ajeitávamos nas cadeiras e comíamos nosso desjejum em total silêncio. Só então balbuciávamos algumas palavras, mas nada muito profundo. Temos dificuldade em acordar. Enquanto tomávamos nossa segunda xícara de chá, acendíamos o fininho da manhã e ouvíamos ao longe um cacarejar e sabíamos que ele vinha em nossa rua já já. Um dia, de maneira espontânea, virei para minha esposa enquanto passava o beque e disse: ‘Deve ser dez horas já. Sebastião vem vindo aí!’ Enquanto Tião cacarejava, minha esposa gargalhava alto. ‘Hahahaha! Não acredito que você deu o nome para o galo de Sebastião!’ ‘Você não quis no menino, dei no galo!’, e me pus a rir junto. Enquanto nos recuperávamos do riso, Sebastião apontou na esquina. ‘Você reparou que ele anda acompanhado?’ ‘Você tá falando da pretinha e da carijó que cisca com ele?’, perguntei. ‘Essas tem nome também?’ Fechei o ceno e pensei com dificuldade. Como não vinha nada, pensei que o sito atrapalhou e por isso respondi: ‘Maria e Joana’, e nos pusemos outra vez às gargalhadas. Passei então a observá-las. A pretinha, Maria, era enjoada, mas valente. Tinha um porte de galo garnisé, um andar altivo e confiante, nunca se intimidando com as motos a passar. Cagava e andava para os cachorros que latiam nos portões, louco para abocanhar seu sobrecu. Não se amedrontava nem um pouco e ciscava perante as grades sem qualquer amor à vida. Era mesmo “vida loka”. A gris, Joana, era assustada, provavelmente deve ter nascido em meados de setembro. Seu cagaço era digno de uma virginiana mal trabalhada: medrosa e paranoica. Andava raspando nas muretas das casas fugindo das motos, sempre perto de Tião, como se ele pudesse lhe proteger muito, e não podia ouvir o latido dos cães, que tremulava as penugens do rabo bandeira de medo. Tião ficava dividido. Joana lhe fazia se sentir galo com g maiúsculo, Maria lhe esnobava. Isso ficava claro na esquina de casa, de onde surgiam. Esse o cruzamento limite onde Maria e Joana se separavam. Enquanto a cagona se travava pelo medo dos cães à frente, terminando seu passeio ali, a intrépida seguia adiante, andando em gramados nunca dante ciscados. Nosso herói ficava em um impasse: seguir adiante com Maria provando que é mais macho que muito galo, ciscando no focinho da vizinhança canina ou permanecer e proteger Joana, mostrando seu valor de galo cavalheiro. Era nesse momento que ele provava para mim ser um galo da alcunha que tinha adquirido. Ia no meio da rua, bem na bifurcação, travando o vai e vem do trânsito, dava duas pedaladas para trás com suas patas, como que patina no mesmo lugar, baixava a cabeça dando uma boa golfada de ar e cacarejava a todos pulmões podendo ser ouvido por toda Chiang Mai. isso sim é um Tião de verdade! Um dia, não direi que belo porque estava um tanto poluído, constatei que Tião andava amuado. Não era um fato pontual. Havia dias que via que não cacarejava mais na esquina. Observei que tinha ao seu lado novas parceiras: uma canela-preta bem feinha coitada, daquelas usadas em macumba, e uma do pescoço largo, parecia galinha gringa, bem estranha. Maria e Joana tinham sumido. Na mesma noite, Cachaça, dono da lanchonete da esquina, estava a bebericar uns gorós. Até aí, nada demais. Só mais uma noite de uísque e água com gás ouvindo Amado Batista tailandês no volume baixo com seus amigos. Ele fazia isso de domingo a domingo. Não respeitava nem os dias santos, não era um homem temente a Buda. Entretanto, como bom monarquista, todo feriado ligado ao reino, ele assava uma carninha na noite que antecedia junto com Pança, o perueiro, que por sinal era dono do Tião. E aquela era uma noite escaldante de agosto que antecedia o aniversário do Rei. Era uma data mais especial, portanto. Eles não assavam carne como normalmente faziam. Era uma data festiva especial, merecendo uma comida especial. Churrasco eles comem sempre e em qualquer horário. Na Tailândia se come churrasquinho de rua do café da manhã até a madrugada, de pé de frango a intestino de porco besuntado na pimenta. Estava a comer uma galinhada bem apimentada que os siameses adoram: kaeng khiao wan (curry verde tailandês). No instante que vi Cachaça salivar perante o caldeirão que preparava na rua, na mesma mureta em que Joana se cagava de medo, me toquei que elas estavam na panela. Comentei com minha esposa que me confessou ter ouvido um cacarejar de desespero dias atrás no meio da tarde. Depois da constatação, ficamos em silêncio. Vendo minha tristeza, buscando simpatizar com o luto, minha esposa disse: ‘Tião nunca mais será o mesmo’. Ela me fez sorrir. Tinha aceitado a alcunha, pelo menos para o galo.
- Rasta Investidor
Todos nós, encarnados em corpos humanos, seres viventes nesse planeta de provações e expiações, em algum grau, somos contraditórios. Na maioria dos casos, nem se quer nos darmos conta. Brinco com minha esposa que o auge de tal contradição seria um rastafári investidor. Pois bem, meses depois da anedota, demos de cara com essa figura mítica, em carne e osso. Falando inglês afrancesado, um homem de quase cinquenta anos, mas que aparentava ter por volta dos trinta e cinco, com longos dreadlocks , desgrenhadamente cultivados como preconiza a tradição de Selassie, nos cabelos e na barba, usando um óculos de grau ao estilo Harry Potter, faltando uma das hastes, senta-se conosco na padaria nepalesa e, como todo bom maluco que nos encontra, se põe a falar sem parar. Nunca tinha presenciado tamanha energia em um único ser. Era um gênio, como todo bom maluco. Podia discorrer sobre qualquer assunto, de macroeconomia à teoria dos vedas, de jogos online a artes marciais. Dizia ser um iluminado. Passara os últimos anos conversando com Deus, diretamente, indagando-o sobre a missão de Jesus e por que ele estivera quatro vezes na cadeia. Ele fora preso quatro vezes: duas vezes em França, uma na Inglaterra e outra na Índia. Segundo ele, essa última fora demasiado traumática e lhe levou ao dialogo direto com o Criador. Dizia-se um defensor dos animais, motivo pelo qual fora encarcerado em Goa. Entrou em uma briga com locais porque estava alimentando os cães de rua. Não compreendi totalmente a história porque confesso ter tido dificuldade em acompanhar seu raciocínio. Até onde entendi, ele deu porrada em todo mundo. Era campeão francês de esgrima e mestre em artes marciais, mas quando a polícia chegou não pode brigar contra cassetetes e uma arma de fogo. Mostrou uma cicatriz na mão, entre os dedos médio e anelar, que teria sido do disparo da arma do policial quando tentou desarmá-lo. Entrou em tantas confusões em sua vida, já conhecera o sistema carcerário europeu, mas foi a gaiola na Índia que lhe transformou. Era músico, investidor, mestre em artes marciais, profissional em algum jogo online de tiro que não sei bem o nome, iluminado, massoterapeuta, esgrimista e filantropo. Não lia livros impressos, pois era uma amante das árvores. Protegia os animais, mas brigava com todos os seres humanos que encontrava, inclusive nós. Encontramo-nos por quatro vezes no café da manhã. Passamos horas conversando com ele. Ou melhor, ouvindo-o. No primeiro dia, fora até simpático e tivemos algum diálogo. No segundo dia, puxava mais assunto com minha esposa do que comigo e me deu sua primeira patada. No terceiro dia, chamou minha esposa para ser DJ com ele em uma das festas em que tocava aqui em Goa. Segurei a risada enquanto engolia um naco de pão, dei um gole no masala chai e olhei para minha companheira que estava azul de embaraço pela situação. A cada resposta dela, ele tinha uma contrarresposta. Deixou claro que não aceitaria um não ao convite. Um adendo aqui, minha esposa se define como “uma senhorinha carola sexagenária que valoriza um chá com as amigas conversando sobre o último livro da Alice Hoffman”. Sendo assim, era óbvio que ela não gostaria de ser DJ de ninguém. Às oito da noite, já estamos de pijama na cama pensando no desjejum do dia seguinte. Ela tentou algumas alternativas como desculpas, sempre rechaçadas pelo nosso amigo rasta. Finalmente, ele conseguiu que ela perdesse a paciência, o que é bem difícil. Ela aumentou o tom e disse, não sugeriu, como seria da sua estirpe, para que ele chamasse o amigo dele que estava ao seu lado, jogado, em Nárnia, após ter fumado haxixe. Aí ele desistiu. Ufa! Que alívio. Daí em diante, passei a analisá-lo, usando os ensinamentos do Mestre Sócrates. Conduzi-o a uma entrevista, praticando a maiêutica. Indagando-o a cada afirmação, deixando-o no palco, que gostava tanto de estar em suas conversas. Dava lhe razão em tudo, porque não tinha alternativa. Ele sempre estava certo. Ele sempre era o melhor. Ele sempre tinha solução para tudo. Observei, antes mesmo de começar a lhe dar corda, que ele precisa do conflito. Com um homem, ele sempre tem um empasse. Com uma mulher, ele sempre é o melhor. Quando eu afirmava algo, ele me contradizia, me diminuía ou dizia que fazia melhor ou que sabia mais. Quando minha esposa afirmava, ele concordava com ela e reiterava que isso que ela afirmava, ele sabia de cor e salteado ou que era um expert no assunto. Minha esposa saiu da padaria no terceiro dia, esgotada, me confessou. No quarto dia, já com uma visão clara sobre as contradições do nosso amigo, fui ao desjejum decidido a compreender o porquê de tanta contradição. Porquê de tanta agressividade. Porquê a necessidade involuntária de estar a frente de todos, ser o melhor em tudo. Deixei-o falar. Não lhe dei corda, não precisei. Ao se sentar em nossa frente, brinquei (provocando) com um bonjour . Ele se arfou e começou a descarregar toda a raiva que ele sentia pelos franceses em mim. Olhei-lhe nos olhos e elevei as orelhas, como fazem os cães, dando-lhe toda a atenção do mundo naquele instante. Então, entendi. Ficamos lhe ouvindo por duas horas, ininterruptas. Ele saiu da padaria, leve e envergonhado. Minha esposa, estava acabada, coitada. Dormiu por duas horas ao voltarmos para casa, em um cochilo sem sonhos. Ao despertar, me questionou o que aconteceu. Respondi-lhe: “deixei sua criança ferida falar”. Nosso amigo, rasta investidor, como muitos de nós, foi negligenciado pelos pais. No caso, pela mãe, a quem chamou de puta, algumas vezes. Sua mãe era hippie. Nos anos setenta, viera para Índia. Teve um affair com um local e assim veio ao mundo nosso amigo rasta. Fora criado pelo padrasto que se casou com sua mãe ainda grávida. Mimado pelos pais até os treze anos, quando seu irmão “branco e francês”, como ele mesmo descreveu, veio ao mundo, destrui o seu. Por esse motivo, ele sempre brigava com todos. Por isso, ele sempre queria a atenção de todos. Como não vencera o menino de treze anos, negligenciado pelos pais, de uma hora para outra, brigava com o mundo por um pouco de atenção, ou melhor, por toda atenção do mundo. O que ele se nega em aceitar é que o passado não pode ser mudado. Que os treze anos não se resgata e que a vida segue adiante. Quanto mais ele quer que o mundo o enxergue, mais o mundo lhe vira a face. Assim é o mundo dos humanos adultos. É difícil deixar para trás a criança ferida. Mas quando não fazemos, o mundo faz por nós. Pois o mundo, não aceita contradições. Não existem rastafáris investidores. Para o mundo, ou se é um rastafári ou se é um investidor. Ou se é homem, ou se é criança. Não se pode ser os dois ao mesmo tempo. Mesmo que se queira.
- Marmara
Era manhã de sexta-feira. O takbir já fora entoado por duas vezes nos minaretes de Sultan Ahmet. Nosso último dia na antiga Constantinopla. Vivemos ali por um longo junho de Sol. Conhecíamos cada esquina da velha capital otomana. Tínhamos explorado todos seus museus, tomado centenas de cafés, compartilhado vários chais com inúmeros lojistas na busca de uma echarpe para minha esposa. Já não havia muito o que explorar. Com uma tigela de iogurte em minhas mãos, perguntei à minha esposa, que bebericava um café, o que faríamos em nosso último dia. Normalmente, ela me responderia com a mesma questão, esquivando-se de tomar uma decisão. Mas não naquele dia. ‘Vamos a caminhar na orla’, respondeu com uma certeza inabalável. Um tanto incomum para seu temperamento canceriano. Não gostam muito de tomar a dianteira nas coisas. É o que afirmam os astrólogos. ‘Quero ver o turquesa do mar de Marmara uma última vez’, complementou, depois de um longo suspiro, com a admiração de pintora no olhar. Descemos a colina. Passamos pela suntuosa praça que separa as mesquitas Hagia Sofia e Sultan Ahmet. Pudemos testemunhar por uma derradeira vez o chamado para as preces do meio-dia. Como o namaz (reza) mais importante do dia santo, não havia local suficiente dentro das mesquitas. Os fiéis estenderam seus tapetes ali mesmo, à porta do templo, de frente para a praça, em direção à Meca, e se puseram a orar. Em um movimento de prostração uniforme, entoavam em uníssono ‘Allah U Akbar!’. A magia do acaso não nos presenteou apenas com a presença da oração naquele dia. Ao chegarmos a orla, com um dia aberto, céu limpo praticamente sem nuvens, o turquesa do mar de Marmara nos fez flutuar. Sentamos num banco sombreado pela copa do pinheiro mediterrâneo e nos pusemos a observar os barcos a navegar no Estreito de Bósforo. Minha esposa calada, em transe, a olhar o mar. Eu a observar tudo com olhos de criança. ‘Se olhares bem no horizonte, quase não se pode vê-lo. O turquesa do mar se confunde com o céu azul bebe’, disse, quebrando o silêncio. Com pragmatismo do ascendente em virgem e a dureza do elemento terra, me respondeu. ‘Não é azul bebe, querido. É azul-celeste essa cor.’ ‘Faz sentido’, afirmei. Saquei a câmera. Concentrei-me no horizonte para tentar capturar o momento numa fotografia. Depois de dois cliques da lente, um vendedor de simit me aparece no enquadramento. Ainda que surpreso, me senti enobrecido pela possibilidade da foto, mas não me pus nervoso. Ajeitei o foco e a velocidade do obturador. Mirei a lente e capturei o instante o mais rápido que pude, antes que o homem se fosse distante. Baixei a câmera incrédulo com a beleza do momento capturado. Sentindo-me abençoado e sem olhar para a foto tomada, desliguei a câmera, pendurei a bandoleira no pescoço e ofereci minha mão à minha esposa. Ela olhou minha mão e fitou meus olhos consentindo ao convite. Seus pés logo se puseram a postos e saímos a andar. Não precisei olhar a foto. Sabia que Istambul havia me concedido testemunhar a honra daquele momento. Caminhar, em silêncio, de mãos dadas, sob o céu e ao lado do mar turquesa, sentindo a brisa, era minha forma de agradecer a cidade que me acolhera. Allah U Akbar!
- Dakshinamurti
Era período de seca no sul da Índia quando o vi pela primeira vez. Não vi seu olhar que muito me impressionaria conforme construía uma relação com ele. Em primeiro lugar, senti sua presença. Intrigou-me, fez-me questionar. Ali, sabia que estava diante de um mestre, um mahatma, mesmo que aos olhos dos outros ele pareça um louco. Em kali yuga , os loucos serão chamados de santos e os santos serão conhecidos como loucos. Estive em Varkala, seis meses antes. Viera despretensiosamente para relaxar, antes de iniciar o trabalho nas Ilhas Canárias, e terminei ensinando ioga em um pequeno estúdio que montamos dentro de um hostel. O dono gostou de mim, de minhas aulas e decidiu me contatar por mais seis meses durante a temporada em Kerala. Lá estava, desolado e cansado, sentado à varanda junto de meu amigo Ramesh, com quem trabalhava, a fumar tabaco e observar os hóspedes, quando o vi pela primeira vez. Tinham cerca de vinte pessoas incessantemente falando, umas sobre as outras, perdidas em uma alegria narcísica, buscando aprovação de si mesmas através da escravização da atenção alheia, em uma grande egofonia. Enquanto isso, um homem destoava dos demais em sua altivez, presentemente alheio à miséria humana daqueles jovens, em sua maioria, em busca de si mesmos. Ele olhava para os céus. Tinha entrega em seu olhar. Flutuava sentado em uma cadeira acapulco faltando algumas cordas que parecia desconfortável – depois tive a oportunidade de me sentar nela e era bem ruim – ainda que ele estivesse confortavelmente presente. Um dia, um grande amigo, que também convivera com ele, me disse que perguntado o que tanto fazia ali parado, Sachinji lhe respondera que movia as estrelas, que sustentava os céus e que esse era seu trabalho. Terminava suas afirmações, raras e cirúrgicas, sempre com uma gargalhada pois, por mais absurdas que fossem, eram verdadeiramente absurdas. Gostava de ficar em sua presença e geralmente ficávamos sozinhos, no máximo com mais uma ou duas pessoas próximas. Quando havia muita gente em seu entorno me evitava. De início, não entendia muito o por quê, mas, com o tempo, com a construção de nossa amizade, sentia que havia uma conexão especial, como se eu também fizesse parte de sua prática, assim como ele, meu guru, fazia da minha. Quando estávamos juntos, só nos dois, permanecíamos em silêncio, não havia a necessidade de palavras entre nós. Falávamos mais na presença de Ravindra que, por ser um jñani , precisava entender tudo, intelectualmente, enchia o mestre de perguntas. Ele respondia, todas, mesmo as não perguntadas, porque para aquele que vive na verdade não existem meias respostas. Aqui fica uma dica. Caso encontre um verdadeiro mestre, pergunte-lhe o que quiser e terás sua resposta. Entretanto, saiba que talvez você não gostará tanto da resposta. Aceite as consequências pois, como instrumento da verdade, o mestre é apenas um agente do carma. A verdade é soberana. Vivia um grande momento em minha vida. Finalmente, encontrara e convivia com meu mestre, que me ensinava muito em sua mera presença, que me compartilhava tanto sobre o sadhana e a vida, trouxe-me o caos e me entorpeceu de verdade. Descia as escadas assobiando de felicidade, tinha dado uma grande aula, sentia-me pleno. Passei por Sachinji que estava absorto nos céus, deitado em sua rede. Quando assim estava, não trocávamos olhar ou qualquer comunicação, respeitava seu nobre silêncio, mouna , e deixava o muni permanecer em sua paz, na presença divina, sem qualquer intromissão. Entretanto, ele me olhou e me paralisou com sua mirada. Não me disse nada, por minutos, só me eternizou em seu olhar e ali fiquei, parado a olhar. Com um abrir de lábios entre a barba espessa, num tom grave e seco, disse “isso que você faz é inútil”, levantou-se e saiu em direção ao mar onde se banhava todo fim de tarde, em shivamuhurta , a hora de Shiva. Tempos depois, visitava um amigo em Jaipur – Ravindra, o jñani – que me sugeriu seguir rumo à Goa. Senti as palavras do Sábio Senhor em seus lábios e segui rumo ao sul. Senti também que reencontraria Mestre Sachinji. Meia década se passou desde o episódio que mudou minha vida. Depois de muitos anos a compreender, a entender, a refletir e a meditar sobre o ensinamento, aceitei o caos e mergulhei em meu sofrimento, em busca da verdade. Entendera que só poderia trabalhar em mim e que esse era meu carma. Servira demais aos outros. Dedicara tempo de mais de vida desse corpo em prol de uma realidade cega. Aceitei o ioga por completo e deixei Shiva tomar conta de mim. Saímos da praia a confabular sobre a alma de minha companheira. Seria ela uma criança ou uma sexagenária, indagou-me. Displicentemente caminhava em silêncio a refletir sobre a pergunta para lhe dar uma resposta acurada. Passávamos por uma passagem estreita, aberta na restinga, usada por muitos para chegar a praia. Um amigo francês me parou com entusiasmo a me cumprimentar. Respondi-lhe com menos fervor e mantive minha marcha. Olhei para trás, para ver se minha esposa continuava próxima para começar a explanar uma resposta. Enquanto falava, mal introduzindo o vocábulo, voltei-me para frente e avistei uma figura alta, esguia e resplandecente. Estupefato, larguei os calçados que segura em minhas mãos, juntei as palmas em saudações e incrédulo bradei “Sachinji, I can’t believe!”. Era Ele. Não o via a cinco anos. Reconheci-lhe porque a Ele estou ligado pelo laço do gurukulam . Se não fosse a tradição, mestre e discípulo, não o reconheceria, com toda certeza. Sua aparência não me remetia ao homem de outrora. As vestes pretas eram as mesmas, pois para um muni, a morte é a libertação. Contudo, o corpo era mais fino e longo, especialmente os membros, e trazia a barba e os cabelos compridos, trançados por jaataas , os dreadlocks naturais dos shaivas. Ele continuou caminhando em minha direção sem esboçar qualquer reação. Eu fiquei paralisado e assim que ele passava por mim, toquei-lhe o ombro em sinal de amizade. Ele apenas passou por mim, sem esboçar nenhuma reação. Permaneci atônito de felicidade, passava por um momento difícil de finalização e tocá-lo me encheu de paz como se tivesse me levado ao vazio que ele vivia. Minha esposa, não entendeu nada e eu não tinha palavras para explicar no momento, assim como continuou sem ter já que uma experiência como essa transcende o intelecto e o único capaz de compreender são aqueles que a experienciaram. Simples palavras são incapazes de interpretar com acurácia algo que vai além do verbo. Caminhamos até nossa casa em silêncio e assim permaneci em minha varanda a mirar os transeuntes, em companhia dos macacos que na árvore ao lado desfrutavam do fim de tarde e a experienciar a felicidade que a visão do guruji impregnou em minha alma. Quando voltei a mim, minha esposa me olhou com seus grandes olhos portugueses e curiosidade virginiana, em busca de uma resposta tangível para algo intangível, e me questionou sobre o que aconteceu. Tentei lhe explicar o inexplicável. A cada resposta implausível, gerava-se mais questionamentos. Ainda assim, sua curiosidade e sagacidade para interpretar algo não-interpretável me ajudou a perceber que o que vivi naquele momento foi um encontro com o Mestre. Era Rudra, Mahadeva , o Grande Mestre. Depois de muito perguntar, vendo seu desespero em tentar compreender o que sentira – sim, ela também sentiu a presença do mestre, como ela mesma admitiu depois, ainda que questionasse fortemente a sensação – disse, ou melhor, meus lábios disseram “Ele não me respondeu porque não há mais ele. Não há mais Sachinji ali. Ele está em Deus e Deus finalmente está nele” e simplesmente a deixei atônita enquanto sorria de felicidade verdadeira. Somos bombardeados de verdades construídas e transmitidas que ficamos cegos perante a realidade, não a vista, mas a sentida. Ele não se parecia com um mestre, não se vestia como um sannyasin , não falava e nem reagia como um mestre de ioga que nos é vendido. Ainda assim, ele era o verdadeiro mestre. Dias depois, acordamos mais cedo do que o habitual, caminhávamos pelas ruas de Arambol com o silêncio e a bruma típicas das manhãs de inverno indianas. Excluindo os habituais “bom dia” e “vamos comer?” não havíamos trocado palavras. Apenas andávamos, quando vi uma figura alta e longa a apontar na curva à diante, era Sachinji. Dessa vez, não disse nada, nem minha esposa, que também o viu, tampouco ele, fiquei apenas a mirá-lo enquanto passava aproveitando o presente momento em sua presença. Quando estávamos próximos suficientes, ele retribuiu o olhar e senti sua altivez e plenitude. Levei a mão ao coração, como costumava lhe cumprimentar e retribui o olhar com um acesso de cabeça. Ele nada fez e continuou andando, altivo e pleno. Nós, permanecemos em silêncio. Desjejuava contente naquela manhã. Minha companheira, depois de terminar seu omelete, já devidamente regressa ao corpo, me disse, entre uma golada de café e outra, “Agora entendo o que diz o tantra quando afirma que, em kali yuga, os santos serão chamados de loucos e os loucos serão os ditos santos”. Apenas respondi com um sorriso porque finalmente ela compreendeu o incompreensível pelo intelecto. Afinal, ela também foi tocada pela presenta de Shri Dakshinamurti , o Benevolente, aquele que transmite o Ioga através do silêncio de sua presença.
- Gás da Verdade
Em meu tempo em Goa, tenho quebrado o jejum no mesmo lugar, no mesmo estofado. Sento-me, junto a minha esposa, na parte de dentro da padaria, com moscas e malucos. Peço sempre ao atendente, um jovem nepalês, que ligue o ventilador, porque assim nos livramos das moscas. Quanto aos malucos, a eles empresto os ouvidos. Parafraseando Ariano Suassuna “gosto de gente doida, como sou do ramo, reconheço logo”. É quase automático suas palavras. Mal nos sentamos, fazemos o pedido, geralmente uma omelete com torradas e um chá, chega um maluco e se senta bem na nossa frente. Na primeira troca de olhares, puxa assunto e aí não tem santo que os faça parar. Minha esposa e eu temos a combinação perfeita. Ela é para-raios de maluco. Eu tenho o gás da verdade. Ela os atrai. Eu os faço falar. No início, sentíamos um certo incomodo. Gostaria apenas de desjejuar em paz. Temos dificuldade em despertar. Com o passar dos meses, cansei de evitá-los e passei apenas a escutar. Brinco com minha esposa que em minha ordem religiosa, ao invés do confessionário, usamos a padaria nepalesa. Quem quiser se confessar me paga um chá de gengibre, limão e mel acompanhado de um pãozinho com manteiga e tá tudo certo. Invariavelmente, as pessoas começam falando de coisas aleatórias. Normalmente, suas maluquices. Passam pelas críticas ao ser humano e suas políticas. Avançam para as mais cabeludas teorias conspiratórias. E finalizam falando de si. Aqui é onde o gás da verdade começa a fazer efeito. A semente de sua loucura é revelada na íntegra. Trazem a tona seus traumas, o motivo pelo qual estão nessa condição. Expõem, para si mesmos, o motivo pelo qual estão como estão. Vejo a surpresa em seus olhares. Sempre rola um silêncio quando a verdade é dita. Nesse momento, respeito a pausa. Deixo-os assimilar o espanto pelo dito, porque é involuntário. Só então, descanso o garfo, já arfado pelo delicioso omelete de espinafre com queijo. Dou um gole no chá, geralmente já frio, e falo. Ou melhor, deixo falar. Os lábios são meus, mas as palavras não. Algo maior, muito maior, me conduz ao dito. Quando vejo, já falei. É um aprendizado para mim mesmo, medíocre criatura que sou. Quando o Mestre fala por mim, eu também escuto. Tanto eu quanto o maluco saímos muito melhores do que chegamos na padaria. Deixamos o recinto satisfeitos, no corpo e na alma.
- Bogatell
Era verão. Meu primeiro em Europa. Fora visitar um grande amigo de faculdade, um francês, morando em Espanha, Barcelona, para ser mais exato. Ele trabalhava durante o dia, logo, só nos víamos no período da noite, que era dia, porque o Sol só pousaria no horizonte mediterrâneo lá pelas nove e meia. Podíamos então aproveitar o período juntos. Nesse dia, fui lhe esperar na praia. Pelas duas e meia, tomei o ônibus na Avinguna Diagonal em direção à praia de Bogatell. Dissera-me para ficar perto da entrada da praça, onde tivesse campos de futebol. Respondi-lhe que estaria por ali sob a sombra de uma das torres de holofotes, comuns em praias de cidade grande. Deitei-me onde havia sombra e era vazio, sem muita gente no em torno. Logo adormeci, deitei de bruços na esteira de palha, relaxei a bochecha no antebraço direito e entreguei-me ao sono. Ainda não estava totalmente adaptado ao fuso. Quando despertei, com uma cutucada na costela direita, olhei para meu amigo sorrindo. “Você é malandro!”, disse com um grande sotaque francês, enquanto apontava com o queixo para as italianas deitadas próximas de mim a buscar um pouco de sombra. “Cara, nem sabia que estavam aqui. Se soubesse, não teria ficado sonhando, babando na areia.”, respondi-lhe e nos pusemos no riso. Ali ficamos por algumas horas. A desfrutar do Sol, já não tão escaldante, e do frescor do mar mediterrâneo. Me contava sobre suas aventuras amorosas, seu amor platônico pela mulher basca do amigo catalão, suas feridas de Helene e seu novo posto. Ouvi-lhe resmungar sobre as mazelas do mundo e reclamar do seu gerente que era, de fato, um escroto. Me ative a simplesmente concordar com a cabeça e dizer “aham ” em concordância, algumas vezes. Cansados, os dois, decidimos voltar para casa. A caminhar pelo jardim da orla de Bogatell, mon frerè disse que seu ídolo, Manu Chao, costuma aparecer e jogar bola com a turma quando ele está em Barcelona. Disse também que ele conhecia um dos músicos, um português, que jogava com a galera do Mano e que por coincidência, hoje, era um dia deles jogarem. Ele titubeou algumas vezes, fez um leve cu doce, mas aceitou minha ousada, segundo ele, proposta de colarmos na turma do Manu Chao. Vai que ele estivesse lá. Um adendo aqui. Esse meu amigo era daqueles fãs de fã clube, mas sem um, era aquariano demais para poder aceitar fazer parte de maltas. Isso fazia com que o nível de adoração tornava a experiência ainda mais emocionante para ele. Ainda que ele negue com veemência, até hoje, passados quase dez anos do acontecido, foi uma das maiores, se não a maior, experiência de sua vida. Daquelas que Deus guarda para ser relembrada nos últimos instantes de vida, antes de lhe mostrar a luz. Sentamos cerca do grupo, numa espécie de palco, uma grande bancada de concreto, onde podíamos ficar perto suficiente para ver o grupo e longe o suficiente para ficarmos próximos do Manu Chao, caso ele aparecesse. Mon frerè tinha uma fé, superstição de fã eu chamaria, de que o Manu, como ele se referia à ele: “O Manu não gosta que as pessoas o idolatrem”. Eu caguei para sua teoria e só fiquei assistindo ao jogo. Era uma daquelas peladas bem ruins, onde a canela é mais cobiçada que a bola, mas boa o suficiente para fazer a galera se juntar, suada, fumar um e tocar um som na praça. Essa foi minha impressão. Em determinado momento, um cara meio velho chega numa bicicleta meio fodida, bem colorida, e se senta com dois músicos que estavam a tocar, bem ao nosso lado, em um banco. Vi que meu amigo mudou de cor. Nunca tinha visto Morgan corar por nada e eramos amigos de longa data, dando me conhecimento de causa para achar aquilo estranho. Ele me sussurra “é o Manu”. Um misto de nervoso e emocionado. Se não fosse seu chapéu e estilão errado, não lembrava o Manu Chao das capas de CD e dos vídeos no YouTube. “Age normalmente” me disse. Dei uma risada de canto de boca e me ative ao silêncio, rindo-me internamente. Permanecemos por ali algum tempo até que a pelada cessou e a galera começou a se aglomerar perto de nós, junto aos músicos. O tal português que conhecia meu amigo nos cumprimentou logo que nos viu. Começou a falar sem parar no português original, bem ao estilo lisboeta. Acho que tinha tempo que não falava a língua materna que quanto teve a oportunidade engatou a quinta e não parou. Fiquei com essa impressão enquanto lhe ouvia. Nisso, chegou um rapaz, com seus vinte anos ou menos, atraído pelo vocábulo lusitano que ouvia destoar do castelhano, nada de Castela, que falavam os demais em meio ao falatório. Era filho do Manu Chao. Era cearense e estava a passar férias com o pai. Eu e ele começamos a trocar ideia e fluía bem. Senti-me a conversar com um de meus amigos de infância da quebrada. Fiquei com a impressão que apesar de pagar de doidão aos olhos da sociedade, que nos julga sempre, Manu Chao soube criar seu filho. Usava muita gíria no seu falar, cheio de palavrotas , mas estava a falar de Hegel, de Guevara, a declamar Facundo Cabral e conversar com muito mais propriedade de Jorge Amado que eu – que só lera “Mar Morto”. Me envolvi no papo que quando me dei conta estava a falar com Manu Chao da diferença entre o Brasil de hoje e da década de noventa. Falou-me da praia de Iracema, de suas saudades do Ceará e da dor causada pela traição da morena. Aí, foi um dois. Quando vi estava a cantarolar Reginaldo Rossi, a acompanhar Manu Chao, à capela, em “Garçom”. Nessa hora, eu corei, internamente, mas corei. Não se ouvia castelhano, só meu brasileiro mal cantado. Caguei! Não é sempre que se pode cantar Reginaldo Rossi com Manu Chao na praia de Bogatell, em Barcelona. Então, soltei o gogó, sem dó! Ganhamos palmas, o Manu Chao me sorriu e passou o violão de volta ao dono. Mon frère me chamou de canto, tinha um sorriso de orelha a orelha, nunca o tinha visto tão feliz. Sugeri que fossemos comprar umas cervejas para a galera. Estavam a assar uma carne em uma parrilha improvisada entre tijolos. Tomavam um destilado horroroso, que nem me atrevi a tomar. O filho do Manu me ofereceu sua bicicleta ao ouvir nossa ideia, concordar e contribuir com alguns euros. Disse então, que me dessem o dinheiro, quem fosse contribuir que eu traria as cervejas, já que só tínhamos uma bicicleta. Foi nesse instante que meu amigo Morgan teve seu momento de princesa. Manu Chao lhe assoviou, lhe fez um aceno, disse algo em francês – sim, ele é francês, só descobri isso naquela hora – e apontou para sua bicicleta. Pedalamos juntos em silêncio absoluto por uma boa distância. Morgan tremia de felicidade. “Cara! Tu tem noção!? Tô pedalando na bicicleta do Manu Chao, cara!” Me pus a gargalhar, quebrando o silêncio que imperava à meia-noite, e ele ria de felicidade. Nunca vi ninguém tão feliz em pedalar numa bicicleta tão fuleira. Ao chegar nas Ramblas, não me deixou sair de perto das bicicletas, como se alguém quisesse roubar uma bike tão deplorável. Comprou várias cervejas, dividiu em algumas sacolas, distribuímos entre nós e voltamos. Ele pedalava em silêncio e calma, apreciando cada instante, querendo eternizar o segundo. Fiquei feliz por ele e respeitei o momento. Pedalamos a volta bem devagar, a sentir a brisa, a ouvir o silêncio tendo o ranger da engrenagem da bicicleta do Manu como trilha sonora. Foi, sem dúvida, o nheque nheque mais sonoro da minha vida. A madrugada já avançava, a bebida tinha terminado, meia dúzia ainda estavam a mordiscar os últimos nacos de carne. Eu estava sentado com meu amigo no mesmo banco de concreto que nos sentamos antes de toda essa experiência acontecer, quando o Manu Chao pediu um espaço e sentou-se entre nós. Não falou nada. Viera atraído pelo silêncio que fazíamos - pois, somente quando a amizade é real que se pode permanecer junto em silêncio sem que haja qualquer desconforto – deu um pega no baseado, me cutucou com o cotovelo e me ofereceu a ponta. Não pude não negar. Fumei meu primeiro baseado com o Manu Chao. Morgan não esboçou nenhuma frase, nem mesmo em francês. Estava em êxtase. Eu fiquei muito chapado, não tinha como esboçar qualquer reação. O Manu…foi o Manu. Ficou em silêncio, porque até mesmo um ídolo precisa se sentir humano.
- Descontrole
Quando abdicamos da vida Ela nos acolhe Gratidão e plenitude florescem Paradoxo de ser morto vivo Estar completamente não estando Firmemente fluindo no vazio do absoluto descontrole Não identificar Traz identidade Esvaziar Traz plenitude Abdicar do controle Traz pleno controle Fluir na desordem Passar a ser a nova ordem Não há o que possuir Não há o que ser Não há o que planejar Não há o que preparar Não há o que cumprir Tudo se possui Tudo se é Tudo se vive Tudo se age Tudo se testemunha
- Vento
O vento me atropela De uma forma Que me deixa Muito além do tempo Ele me transpassa Me liberta Como se já não fizera Mais parte dele O vento passa Mas não o tempo Esse, permanece Nem parece que existe Flui pelo infinito Desloca-se de nada Para lugar nenhum É Deus Em sua essência
- Quem sou eu?
Quem sou eu? É a pergunta a ser respondida. Depois de ter caminhado arduamente em minha direção, Isso é mais que claro para mim! Sobrou-me pouco ou quase nada. Finalmente, Estou a ter o privilégio de aparar as arestas, Inclusive do silêncio. Silêncio esse que quebro ao escrever essas linhas. Ainda que necessárias, Pois ao fazê-las percebo meu eu vivo, Teimando em se desintegrar no eterno. Para Shiva, Nada existe além Dele. É o Grande Deus, O Ser entre os seres. À Ele me abandono no eternamente presente através do silêncio que a tudo vê, Ouve, escuta, experiência, sente e observa, vivência… Como partícula do Divino, Um Oceano em uma gota, Não só uma gota no oceano. Shiva está em mim, Sou EU a ser revelado.